Completo. Lê-se de cima para baixo

teste

1º dia

Saída da Lardosa pelas 13 horas. Boleia do João da Rosa até à entrada de Castelo Branco. Fui a casa do Helder. O puto estava a brincar com o jogo que lhe dei. O Helder vaticinava-me insucesso pois convidou-me a ir lá tomar um copo quando hoje desistisse. Realmente, o meu aspecto talvez deixe um pouco a desejar: em calções, com barba e uma grande mochila...
Meia-hora depois, talvez, parou um tipo de Mercedes 3 pontos, que me levou até Estremoz. Retornado, lá fora era “camanguista” – negociava em diamantes. Em Outubro de 75, ganhou 1500 contos. Só anda em carros caros. Deu 30 con­tos para comer uma cantora brasileira. Lá fora andava sempre a escapar-se da Judiciária e, depois, do M.P.L.A. Só conhece “gangsters”. O tio ia sendo morto pelo M.P.L.A. Também negociava na “camanga” e os pretos ven­diam-lha mais barata, porque ele tinha um restaurante onde toda a gente comia de borla. Antes disso, tinha duas casas onde cada mulher que lá ia em "negócios" deixava 150.
100 gramas de diamantes podem valer 10.000 contos. Há maneiras fáceis de ganhar dinheiro, mas o resto exige esforço: Aí vem ele de Macedo de Cavaleiros, namorar uma moça a Estremoz.
Fui a pé 4 Kms., até ao cruzamento para Évora: cansa um pouco, a mochila pesa, começo a suar na dobra do cotovelo!?, mas vou debicando um cacho de uvas. A mulherzinha da passagem de ní­vel interpela-me, conversamos um bocado, ajudo-a a fechar a cancela e discorda do meu viajar – “as férias são para descansar ou trabalhar”. Faz-lhe muita confusão o gosto pelo andar a pé.
Boleia para Évora, com duas francesas e um francês, professores de educação física, que estão em Évora há três dias e andam a visitar os arredo­res. Já visitaram também o norte do país.
Foram deixar-me no centro de Évora e seguiram para o parque de campismo.
Dormi no Giraldo por 60 escudos. Não há água na cidade.

2º dia

Saí ás 10. Andei um pedação a pé.
· Boleia dum casal de meia-idade.
· Boleia duma carrinha carregada de relógios de sala, até Monte do Trigo.
· Boleia dum tipo de Loures, que me explicou como funcionam os fornos para fazer carvão, que eu via espalhados pelos campos: uma abertura, lenha, palha e terra por cima. Sabe-se quando está bom, pelo cheiro.
· Boleia dum casal de emigrantes, da Vidigueira a Beja. Vêm há dois dias a conduzir. Receiam a vi­da cara de cá. Dizem que, aqui, por mais que se trabalhe, nunca se vê nada de jeito. Parece-me que têm razão.

Beja


Atravessei Beja a pé. Um passarito que não parecia novo, tinha difi­culdade em voar. De pulo em pulo, lá subiu a uma árvore.
Dois ingleses à procura de acontecimentos políticos. O meu inglês está fraco.
Dois copos de leite, mastigados durante vinte minutos, foram um almoço magnífico.

Aqui estou à saída de Beja, a ler as inscrições duma placa que indica: Faro. Eis algumas:
· “Tony o homem que domina as mulheres - Adeus querida, ai amor”.
· “Estou aqui há quase 5 horas para arranjar boleia e estes cabrões não me querem levar, parece que são todos comunas ou da UDP que ainda são mais canalhas”.
· “Chicalhada para a rua”.
· “eu sou PPD 0K - então és bom rapaz”.
· “Sol. Nº 293/76 Évora sou PCP”.
· “Eu sou um amor perdido sexual - Então deita as calças abaixo e depois verás como é. . . “.
· “Escreve ao Antonnie Francoisse - Odeceixe - Brejão - Baixo Alentejo”.
Há ainda a sigla U-D-P, com a palavra ”cabrões” sobreposta, e um cravo com a legenda “mete-o no cu”.
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São 21 horas ou mais. Estou aqui, num restaurante barato em... Beja. Estou muito em baixo. Estive quase 5 (cinco) horas, à espera de boleia. Estive em várias posições: nada. Voltei para Beja. Dei várias voltas para conseguir arranjar quarto por 80 escudos. A minha calma já era forçada.
Doem-me os pés, as pernas, a anca esquerda, os ombros.
Apetecia-me uma salada de tomate com atum. Não têm atum. Comi frango com molho de tomate. Para sentir o gosto do tomate, tive que pedir uma salada dele.

Que faço eu aqui? Que procuro eu? O choque do contraste entre a vida sedentária e esta começa a ser relati­vamente violento. Vou tomar um valente banho quente e deitar-me já.

Será que nada acontece por acaso? Acredito. Não é por acaso que os portugueses têm medo, quando vêem um tipo em calções, com mochila e saqueta ao cinto. ”Pays de moutons”, como ontem disseram os franceses que me deram boleia. Desprezam-me, mas se eu mostrar dinheiro, lambem-me os pés. Neste momento, quando o tentassem fazer, desmoronar-lhes-ia a dentuça a pontapé. Mas eles até gostariam e agradeceriam. ”Pays de moutons”. Merda.
E as melgas, a incomodaram-me, também.

3º dia

Só hoje tomei banho, mas também dei banho a toda a casa de banho. Aquele sistema poliban é infernal: água por todos os lados, ora muito quente, ora fria.
Saí ás 8 e apanhei logo boleia, mas noutra direcção: Almodôvar. Ironicamente, o casal que ontem me trouxe para Beja ia exactamente para… Almodôvar. Hoje, eram duas moças, p’raí estudantes do ma­gistério e um tipo que conduzia mal.
Estive 3 horas em Almodôvar e nada de boleias. Só passou um enterro.
Com este calor incrível, os fritos, que a mamã metera na merenda, estragaram-se, claro.
Almocei um quilo de tomates com sardinhitas assadas, muito boas, na tasca da Sr.ª Rosa, uma muito velhota, castiça e atarefada taberneira, que servia copos de vinho e sardinhas para uma dúzia de velhotes, que parece gostarem do sítio, que aliás é agradável. Também vende aveia, vassouras, bilhas, etc.
Estou a pensar arrancar a pé, pedindo boleia. Estou farto de estar parado. Dizem-me que, ficando na bomba de gasolina, se arranja boleia com mais facilidade, mas eu não gosto do sistema: cai-se mais facilmente na subserviência e eles, se dão boleia, é porque são apanha­dos de peito descoberto. Dão-na, mas contrafeitos. Assim, na estrada, só dá quem quer e mantenho a dignidade.
Aliás, é giro ver as reacções deles. Os que vão cheios fazem o gesto de que vão cheios. É o pretexto perfeito pa­ra se safarem. Dos outros, a maior parte indica que vai só ali à frente, (como se eu acreditasse) e os outros nada dizem, mas sentem-se incomodados por eu os obrigar a tomar posição e aceleram. Enfim…

Pus-me a pé, realmente. Andei 6 km e ninguém parava. Acredito que haja tipos que se sintam desesperados, quando ninguém liga à sua situação difícil (mendigos, reformados, etc.).
Finalmente, um tipo levou-me até uma territa, com um nome estranho: Dogueno.
Aí, um camionista, que parara para beber um copo, chamou-me e levou-me até Fa­ro por aquela estrada difícil, cheia de curvas.
Em Faro vi o meu colega de trabalho, Antonino.
Uma mulata, cheia de sorrisos meigos, levou-me até Olhão.
Daí, uma furgoneta le­vou-me mais a outro português e a um casalito inglês e deixou-nos logo à frente.
Um senhor católico levou-me até Tavira. Tenho a certeza de que me deu boleia por vir a ouvir uma palestra católica na rádio.
Voltei a ver os ingleses que foram com um tipo que não parou para mim, mas fez uma gran­de travagem para eles.
O mesmo da furgoneta le­vou-me mais 5 km.
Um casal alemão levou-me até a 6 km de Vila Real, onde estava um casal português, assim já para o desesperado, pois já era noite mesmo.
Um senhor dos Serviços Florestais levou-me até Monte Gordo.
Ansioso por me sentir junto à fronteira e saber que de manhã entro em espaço verdadeiramente novo, peguei na trouxa e to­ca de calcorrear os 3 km que faltavam para Vila Real de Santo António, apesar de já ter uma bolha num pé.
Apenas cheguei, logo um ti­po se ofereceu para me indicar um quarto, onde me acompanhou. Preço: 70 “paus”. Dormi bem!

4º dia

Engraçado, parece que já tinha estado nesta casa, anteriormente. O ambiente não me era estranho. Dejá vu?
Vesti os calções ainda molhados, que lavara on­tem à noite, como também lavara a mochila, onde um chouriço da merenda rebentara.
Fui para o barco. Na fronteira não houve qualquer problema. Passei com 7900 Escudos, 150 Francos e 100 Dólares. O tipo que me levou ontem ao quarto queria arranjar-me pesetas, mas eu, feito es­perto, rejeitei. Agora sei o que perdi.
Entrei em Espanha perto do meio-dia. Almocei à beira da estrada, já com leitinho. Nunca bebi tanto leite na minha vida.
Um tipo da Marinha levou-me até Huelva. Deu uma volta pela cidade, para eu ver.
Daí, um velhote “acelera”, levou-me até La Palma. Entretanto, mos­trou-me o rio Tinto, cuja água é barrenta aver­melhada, pois vem duma zona de cobre. Passámo-lo perto de Niebla, uma cidade murada onde ele dis­se que foi utilizada a pólvora pela primeira vez na Europa, não sabe se pelos árabes ou pe­los cristãos.

Em La Palma, cheio de calor, aí vou eu beber um copo de leite. Foram dois, por fim. Antes, perguntei se aceitavam escudos ou francos. Francos, sim. Bebo, tento pagar com moedas de França, mas não aceitam. Que só “bilhetes”. Lá vou buscar uma nota de 50 francos ao fundo da mochila, no interior das calças, num bolso falso, e pago. Faço as mi­nhas contas e penso que 50 francos devem valer 650 pesetas, ele faz as dele e pensa 510 pesetas. Tirando o leite, quer dar-me 480 de troco. Eu protesto, sem resultado. Amuo e peço para me passarem uma factura. Aí, o tipo diz que não lhe estrague a vida, leva as pesetas, traz os fran­cos e exige que eu lhe dê 30 pesetas. Eu come­ço a encolher-me, sem saber como sair desta. Quando eu já estava quase na posição de “grokar” (posição fetal), o tipo diz que posso ir em paz. Eu tento ainda pagar com os francos em moeda, ele rejeita e eu resolvo mesmo ir embo­ra, a pensar ainda em pagar as 30 pesetas ao tipo. Até pensei em lhas mandar por um português, que ali passam aos montes. Hoje, um dia depois, já desisti. Afinal, o tipo queria “levar-me”, pois no banco o franco está a 13,47 pesetas, dois copos de leite qualquer tipo oferece e longe de custa­rem 30 pesetas.
Estava eu neste lucubrar, quando surge um tipo a apitar e a indicar para onde ia. Eu estendo o dedo e a comunhão ficou assim completa. Vinha de Casablanca e ia para Palma de Maiorca. (!?) Achei-o estranho. Perguntei-lhe os câmbios e ele corrobora que o franco está a 10 pesetas e no final oferece-se para me trocar todos os francos que tenha. Eu, entre o duvidoso e o reconhecido pela boleia, resolvi arriscar 50 francos. Enfim, ficaram bem pagos os 60 km até Sevilha, a Coca-Cola e os 2 cigarros que me ofereceu.


Sevilha


Arranjei quarto por 110 pesetas. Mas que mara­vilha! : - Sobe escadas, contorna, desce escadas, trepa escadinhas, contorna varandins e entra numa porta que chia nos gonzos, cheia de tabuinhas, batentes e trancas de ferro. Com vista para a rua.
Não há água e eu vou dar a minha volta, aí pe­las 18,30 h. Lojas e mais lojas, a catedral é gran­de e bonita por fora, há umas casas agradáveis à vista, ninguém conhece flocos de aveia, o ca­lor é abafado e eu encharco-me em leite. Nem me apetece comer nada.

5º dia – Quarta-feira (?)

Fui ao banco e os tipos apenas me trocam (por dia), 1000 “paus” por 2043 pesetas. Tenho que chegar a França depressa. Por isto e não só. Saio hoje já daqui.
Segui uns turistas, a ver os jardins de Murillo e a casa onde viveu e o bairro adjacente da Judiaria e fui dar com uma coisa gira que é a Praça de Espanha (um grande edifício semicircu­lar, terminado por 2 torres, tudo espectacular, com lago, barquinhos e pontes em frente e que foi feito para as repartições oficiais).
Por toda a parte, quartéis da Guardia Civil e o seu lema ”Todo por la Pátria”, como se a Pátria fosse algo palpável e identificável, ou merecedor de tal sacrifício.
Aí pelas 3 da tarde, pus-me à boleia e um casal de americanos jovens (talvez antigos hippies semi-recuperados), levou-me até Jerez. Têm uma carrinha cheia de gavetinhas e cama e tapetes no chão e nada cai, pois ela é muito “sweet”, a conduzir. Contaram que estiveram ou estão há 1 ano em Espanha e estiveram um ano na Alemanha. O ano passado, levaram 3 dias de Sevilha a Cádiz, à boleia. Agora, vinham de Portugal e gostaram da zona de Peniche até à Ericeira. Ficaram muito interessados em visitar os Açores, quando lhes falei que há lá uma base america­na, pois o modo de vida deles, é de “partir o coco”. Dizem eles: “Nós fabricamos artigos em couro e como os americanos, quando recebem o pagamento, compram o que vêem, nós andamos sempre perto das bases americanas!”
Boa, é assim mesmo, esfolem esses gajos, ainda que de onde vem esse haja muito mais.
A “sweet”, quase não tem pálpebras. Os gajos, adoram vinho. Ele, estava sempre de “botella” nos queixos e ela, num café, pediu vinho doce. Aconselharam-me a visitar a 3ª ilha das Baleares, em tamanho (Formentera?), Walles e a costa oeste da Escócia. Foram para Rota (base americana), aqui perto de Cádiz.
Em Jerez, estava ventania, mas logo um tipo, que tem a noiva em Cádiz, me apanhou. Que sotaque o tipo tem! Eu, ás vezes já me ve­jo aflito com o espanhol, quanto mais com sotaque! Foi o tempo todo, a pôr “cassetes” de espanholadas populares.
Aqui, nestas regiões de vinho, como em Portugal, cá estão a Croft, a Osborne e outras, assim como a Pedro Domecq, em Jerez.
Em Cádiz, farto de dar voltas e tudo estar cheio e eu cheio, mas de sede e já a não poder com a mochila, de tanto subir escadas, aceitei a sugestão duns putos, que me levaram a uma casa particular - 150 pesetas pela dormida.
A propósito, estas casas e pensões são castiças. Têm um pátio central para onde dão todos os andares, com um varandim. Algumas, cheias de plantas, ficam com um ar de horto ou qualquer coisa assim fresca e agradável.
A vida nocturna acaba à meia-noite, mas as pessoas, até lá, só se entretêm a passear a rua e a beber um copo nos inúmeros bares espalhados por todos os lados.
Lavei novamente os calções, dos quais gosto cada vez mais.
Suponho que isto é um estilo de veraneio ultrapassado, porque as pessoas olham-me e até um ou outro pendura que vejo, leva calça com­prida. Por outro lado, quase não vejo tipos à boleia.
É tudo por hoje. Vou dormir.
O tecto fica ao dobro da altura normal: 5 ou 6 metros.

6º dia – Quinta-feira

Às 10, estava na estrada. Quando os calções enxugaram, pois vinham pen­durados na mochila, fui trocar.
Estive até às 3 da tarde sem apanhar boleia. O sol escaldava muito mais que os outros dias. Corria vento, mas queimei-me hoje muito mais, tanto, que algumas zonas das pernas e braços me doíam. Depois de estar em várias posições, da estrada e do corpo, e depois de comer algo, estendi-me um pouco e até dormi. Apareceu por ali um puto e conversámos.
Agora consigo estar tempos infindos de pé ou andar vários km sem problema, mas...
Sentei-me no chão, estendi o braço apoiado e deixei-me ficar. Finalmente parou uma camionete. O tipo levou-me 10 ou 13 km até S. Fernando. Disse que está cansado do carro, pois trabalha 10 horas por dia, a levar areia, cimento, tijolos, etc. Traba­lha 54 horas por semana ou mais. Aos domingos, prefere andar de autocarro.
Estes tipos aqui, têm todos um sotaque lixado.
Outro tipo levou-me mais 10 km. Todo cheio de finuras e delicadezas, convidou-me a ir com ele para Sevilha, pois gostava muito de falar comigo. Que podia apanhar depois o avião para Málaga. Não sei se o gajo era “rabo” ou não, mas tinha qualidades…
Onde fiquei – Chiclana – estava um checo à boleia. Veio de Praga, por Paris, Bordéus, esteve mais ou menos um mês em Madrid e hoje ia para Ceuta. Ia e foi, mas de táxi, já que tinha pressa e boleias, nada. Lá em Chiclana, estive 2 horas.
Dali até Co­nil, fui com uns marinheiros. Aí, comprei leite mesmo a saber a vaca, mesmo bom.
Um tipo de certa idade, que já tinha andado a espreitar os penduras e tinha já levado outro gajo em Chiclana, parou e levou-me mais 13 km. A conversa girou à volta da energia eléctrica que Portugal não tem e compra a Espanha, que tem 3 centrais nucleares, exporta urânio para os Estados Unidos e o compra já tratado muito mais caro. O tipo, que trazia no carro a foto da mãe falecida, apesar de todo atenções a pôr-me o cinto de segurança, que em Espanha é obrigatório, e aproveitar para me tocar, não tentou mais nada, talvez por eu dizer que já fora casado.
No cruzamento onde fiquei – Barbate de Franco – fez-se quase noite e eu a 70 km de Algeciras e sem ver por ali nada para dormir. O frio começou a fazer-se sentir. Mudei de roupa.
Um tipo apanhou-me e passados 4 km parou e propôs-me levar-me até ao povoado onde houvesse dormida e dar-me 200 pesetas. - E eu que dou? - “Esto”. E começou a mexer-me entre as pernas. Eu, sem querer ser rude, fui dizendo que não gostava, que não era capaz. Aí o tipo puxa um embrulho de jornal, com cartas de jogar, pornográficas. Eu continuo a negar, o tipo põe-me as 200 pesetas à frente, que se eu quiser posso, que ninguém vê, que não se sai do carro, que são só 10 mi­nutos, só deixar correr a mão, que considere que estamos a quilómetros de qualquer povoa­do. Eu digo que não e que se quiser, eu fico ali mesmo, e o sacana deixou-me ali mesmo e voltou atrás. Ainda me disse que havia uma taberna, 3 km à frente.
Aí vou eu, de noite, a roer o meu jantar, à es­pera que passe o J. Cristo num bruto Mercedes.
A tasca lá estava, mas dormidas não tinha. Re­solvi atacar os camionistas que ali estavam parados. Enquanto esperava que acabassem de comer, um miúdo fez amizade e mostrei-lhe o mapa da Europa. Ficou muito surpreendido com as distâncias e o tamanho dos países.
Um camionista lá me levou até Tarifa, mas a conversa, que eu pensava perceber ao princípio, estava a pôr-me com sérias dúvidas acerca das tendências sexuais do gajo. Ainda por cima, ca­lou-se, quando lhe contei o que me tinha acontecido, com ar de reprovação.
Que raio! Estes últimos 3 eram todos da mesma terra. Pega-se? O das cartas, quando lhe perguntei, disse que nunca tinha gostado de mulheres.
Chegámos a Tarifa ás 23 e o tipo ainda me pagou um café.
Umas miúdas lá me indicaram um hostal barato – 100 pesetas.
Parece que há festa por aqui: as miúdas, todas pinocas, com vestidos típicos, a passear as ruas para cima e para baixo; as ruas a cheirarem muito bem, a flores e a ervas.
Lavei a roupa toda e aqui estou a escrever e a olhar a povoação (conquistada por D. Sancho IV - o bravo, aos Mouros, em 1292), banhada pe­la lua cheia. Um fim feliz, para um dia negróide.

7º dia – Sexta-feira

Só acordei ao meio-dia.
Tenho que estar em França dentro de 7 dias, pois os tipos não me trocam mais Escudos.
Na primeira boleia, aconteceu pior do que eu já receava: quando, num 3 portas, ponho a mochila no banco de trás e vou para me sentar, dou com o banco do pendura e não só, cheio de leite. A rolha da minha garrafa de leite tinha saltado e eu entornara uma grande golfada pelo banco. O tipo olhava-me com um ar muito infeliz… Desolado, fiquei logo na mó de baixo, mas pe­di-lhe as minhas desculpas e pronto.
A conversa foi bastante interessante. O tipo é professor primário e começa a estar politizado. Está na fase de acreditar nas conquistas sindicais: como se o patronato não as recuperasse nas calmas. Falei do processo em Portugal e ele falou de Espanha. As manifestações aqui, têm que ser autorizadas, indicando o trajecto a percorrer, o que se pretende pedir, etc., e mesmo assim, de vez em quando, lá vão alguns desta para melhor. Receia que a confusão, que reina na len­ta liberalização em Espanha, dê azo a que um militar qualquer faça um golpe de Estado e se volte ao mesmo.
Deixou-me em S. Roque. Almocei à beira dum riacho.
Um tipo agradável levou-me a Marbella, onde fiquei. Disse que Marbella é mais fechada e mais sofisticada que Torremolinos.
Na estrada que percorremos, vi algumas urbanizações turísticas muito agradáveis à vista.
Consegui um quarto porreirinho por 110 pesetas, fora o banho. Lavei mais umas coisas e a mochila, que estava já muito mal.
Marbella tem lojas de tudo, por todo o lado e muitos bares de várias nacionalidades. Quem quiser gastar dinheiro não precisa de ir longe. Está cheia de estrangeiros, que à noite andam to­dos pinocas, elas de vestidos compridos bordados. Tudo muito chic.
Chateei-me bastante. Não era isto que eu esperava. Se há alguma coisa que eu quero, isto por aqui não é.
Tentei entrar numa “boite” ou lá o que era, mas o porteiro lá achou que eu não tinha di­nheiro ou estilo para aquilo. Queria 300 pesetas à entrada.
Havia um clube chamado: Clube 33 – Hang me. Estas palavras acompanharam-me toda a noite: HANG ME.

8º dia – Sábado

Uma sacana duma melga atormentou-me e não consegui matá-la: safava-se com uma perícia incrível.
Aí pelo meio-dia, estive a cortar em pedaços uma parte do chouriço, do presunto, do queijo e da marmelada que levo, de modo a estarem mais acessíveis quando faço as refeições, embrulhando cada bocado de per si. Fiz uma bodeguice tremenda.
Na estrada, um alemão, com carro espanhol e que fala espanhol, levou-me 15 km. Disse que está um ano cá, um ano lá. Ficou admirado do meu pouco di­nheiro para 3 meses. Sim, saí de Portugal com 150 Francos, 100 Dólares e 7900 Escudos.
Era para ter ficado hoje em Marbella, ir à praia e conhecer aquilo melhor, mas vou só conhe­cer Torremolinos e, se for como Marbella, vou por aí acima disparado à procura duma razãozinha para viver. Aqui estou na estrada, a acabar de escrever o diário de ontem e o de hoje.
Aqui, Sul de Espanha, caem todos os privilegia­dos do Mundo. É impressionante como o sexo es­tá comercializado e, se tudo é sexo, aí temos uma sociedade empenhada em cada um ser mais rico que outro, esperançados em ter, a partir da riqueza, maiores privilégios sexuais. Tirem o sexo a estes gajos (capem-nos ou forneçam-lho à discrição) e esta bela sociedade de que os ocidentais tanto se gabam vem por aí abaixo sem haver revoluções.
Depois de muito tempo de espera, mudei de lo­cal e lá parou um casal alemão que me deixou muito perto do centro de Torremolinos.
Dei umas quantas voltas até arranjar dormida. Os donos de hostal têm um preço marcado, mas depois dizem outro preço que inclui banhos e pequeno-almoço. Enfim!
Lá fui dar a um local de apartamentos – uma série de casitas pequenas, voltadas para um pátio cheio de árvores – com um divã e uma casa de banho, banho à discrição e lavagem de rou­pa não proibida, como é nalguns sítios: 100 pesetas. Luxo não havia, mas era aconchegado.
Torremolinos está cheio de gente, com lojas por todos os cantos e bares e restaurantes e biscates, como aquele tipo que tem cartazes de corridas de toiros e os vende a pessoas cujo nome ele imprime no cartaz, entre o nome de El Cordo­bés e o de outros toureiros famosos. E as pessoas lá vão comprando, ou não fosse o nome próprio, das palavras que qualquer um mais gosta de ouvir ou ver escrito, neste caso associado a outra gran­de ambição das pessoas que é a fama, o ser conhecido e admirado, como o são os grandes toureiros. Outros, desenham o rosto de quem quer dar 500 ou 1500 pesetas, para preto e branco ou cor, respectivamente, em 30 minutos com a pessoa a posar, claro, ou por fotografia. Um deles que também pinta, mas outro género de quadros, agradou-me pela sensualidade que imprime às figuras femininas, repassando tu­do de simbolismos e interpretações de génese e morte, que apelam muito à meditação.
Enquanto escrevia ao Granja e ao Duarte – colegas de trabalho – bebi um canjirão de cerveja.
Com a vontade de falar bem espanhol, falo uma coisa que a mim me soa a italiano.

9º dia - Domingo

Levantei-me bastante tarde e às 2 da tarde fui para a praia. Todo o dia esteve enevoado e com vento. Uma nuvem grande não havia manei­ra de sair ali de cima.

Torremolinos


E a praia, que tristeza: toldos de cânhamo ou corda ou sisal, em forma de guarda-sol, com esteiras de madeira e colchões de espuma por cima, duma ponta à outra da praia. Está visto, aquilo é um sítio para apanhar sombra.
Mais para a tarde, estendi-me um bocado, mas o calor era pouco e a areia escura, sujava.
À vinda, um tipo de barbicha e cheio de trejeitos, abordou-me. Tinha tipo de indiano-negro. Disse que era inglês, nascido na Guiana, filho de português e indiano.
Depois de um pouco de conversa, convidou-me pa­ra aparecer à noite mas, já escaldado com as últimas experiências, perguntei:
- “Só para falar?”
- To talk or… Are you homosexual?
- No, and you?
- I’m bisexual.
Disse que é artista, que faz as suas próprias roupas e que em arte é absolutamente necessário ser homossexual ou bisexual: disse que, depois de estudar numa escola de arte dramática, estava para assinar um contrato com a televisão, mas o “producer” só lho assinava se fosse com ele para a cama. Como este não gostou dele, não houve contrato.
Aceitei aparecer à noite, depois do tipo prometer que “no strings attached”, que era só para falar, até porque não vislumbrava outra alter­nativa de conversa e também por curiosidade pela algo estranha personagem.
À noite, aparece o tipo, de camisa de flores cheia de folhos, calças e colete de seda branca e sapatos de verniz. Eu, de botas de camurça. Assim vestido e com aqueles meneios e gestos característicos, toda a malta olhava. Põe um lencinho de seda na cadeira, quando se senta, está sempre a falar das suas roupas e mete muitas frases de francês quando fala. Parece-me muito exibicionista.
Indicou-me onde eram os 3 clubes de maricas e alguns cafés de “pin-up girls”.
Só uma vez tentou pôr a mão no meu ombro, dizendo que gostava de mim como um irmão.
O pai abandonou a mãe e esta rejeitava-o um bocado e, por isso, o tipo ficou sempre com problemas de falta de afecto. Quando aos 18 anos foi para a cama com um inglês já entrado, disse que era como se o pai o estivesse a acarinhar. Tem 42 anos, mas parece mais novo.
Tem 2 meios-irmãos, mas gostava de ter um irmão autêntico. Vive com um casal inglês que o adop­tou. Tem uma “girl-friend” norueguesa, com quem ele teve uma vez relações sem ela querer, para lhe provar que o “master” era ele e não ela. A ela tinha-lhe morrido o “boy-friend”. Agora, ela tem outro e este não se chateia. Disse que ela é que é muito ciumenta…
Tem uma filha de 24 anos, duma portuguesa, no Canadá. Essa filha fez agora um aborto já avançado e ele concorda, pois o pai da criança não casa com a mãe. Acha que uma criança nes­sas condições é um “mistake”. A concepção que ele tem da organização sócio-sexual, é a da família tradicional.
Enfim, apesar de tudo, pensei que fosse mais «avant-garde» do que é. Larguei-o cerca da meia-noite.

10º dia – Meados de Setembro

Saí de Torremolinos pelas 13 horas. Andei um pedação a pé.
Um tipo que distribui géneros alimentícios levou-me até Málaga, que é a uns 10 km. Diz umas palavras em português, pois trabalhou com alguns na Alemanha.
Málaga tem um castelo no alto e uma catedral que não visitei. Um passeio muito sombreado foi tudo o que percorri. Uma enorme fila de carruagens coloridas cujos cavalos têm na cabeça um guarda-sol pequenino, todo florido, chamou-me a atenção, assim como um auditório de construção arrojada, aberto para o jardim, onde a orquestra filarmónica de Málaga toca aos domingos.
Comprei um pedaço de coco. (!)
Almocei sobre as rochas, à beira-mar.
Depois, estive muito tempo a pedir boleia, andei um bocado e nada. Finalmente, uma senhora muito engraçada, Ana, levou-me mais 12 km, até Rincon de La Victória. Muito simpática. Fiquei à espe­ra duma possível deixa, se o interesse dela fosse mais lúbrico, mas não houve deixa e eu não posso tomar dessas iniciativas, pensando em mim e nos futuros penduras desta zona.
Lá fiquei nessa terra poeirenta até anoitecer. Mas que merda de férias. Se isto são férias de gente, macacos me mordam.
Procurei em toda a terra: não havia dormidas vagas. Andei 2 km para trás, para Cala. Só havia quartos duplos: 200 pesetas. Fui a uma velhota, que aluga quartos particularmente, mas deve ter tido medo de mim e foi dizendo que não sabia se tinha a olhar insistentemente para mim e acabou por dizer que não tinha.
Enfiei as minhas camisolas e jantei na estrada, disposto a dormir na rua, mas depois de jantar, quando já a ira se tinha ido um bocado, resolvi condescender e largar as 200 pesetas. Lá fui, mas já estava tudo cheio. Fui para uma bomba de gasolina, à espera que parasse algum tipo que fosse para um local onde houvesse dormidas, mas o raio da bomba não tinha freguesia nenhuma!
Bolas, tudo se proporcionou para que eu dormisse na rua, até a 1ª pensão onde fui que estava cheia, coisa muito rara de acontecer, segundo me disseram.
Em frente da bomba, junto a um muro, à beira da estrada mas um pouco abaixo desta, havia um pasto seco e fofo. Esten­di uma toalha por baixo, outra por cima de mim, enfiei os calções na cabeça, encolhi-me e toca de dormir.
Não tive grande frio, pois o vento amainou e desapareceu praticamente.
Estou agora com 1000 km de viagem.

11º dia – Terça-feira

Um bocado ramelado, lá segui. Apareceu-me o distribuidor de pão especial e biscoitos que on­tem me tinha trazido até Málaga. Como ele ia em serviço parando aqui e acolá para deixar mercadoria nos supermercados, demorámos um bocado para chegar a Nerja, a 45 km de Málaga. Ainda fomos beber um café com uns “churros”, em Torre del Mar.
Ele trazia lá um bolo ou pão, que disse que era tão mau, que não o comia nem que lhe apon­tassem uma pistola ao peito. O tipo é castiço.
Comprei um livro em espanhol. Como poupei na dormida, faço agora uma extravagância.
Em Nerja, a malta não parava, de modo que fui andando a pé, 4 km. Terreno muito acidentado, mas muito bem culti­vado e regado, pois os tipos têm a sorte de ter um grande manancial num local alto e daí canalizam a água para irrigar aquilo tudo.

Nerja

Vi um nicho, com um Cristo grande, nicho esse atafulhado de garrafas de azeite e óleo: são a reserva, para uma lamparina sempre acesa, que tem ao lado.

A 4 km de Nerja, há a chamada “Cueva de Ner­ja” – gruta de estalactites. Depois de muito pensar nas 50 pesetas que ia dar, resolvi ir vê-la.
Não choro as 50 pesetas. Vale a pena. Não resisti a candidatar-me a estragar, por falta de iluminação, mais alguns “sli­des”, em pose.
A princípio, fiquei desgostoso pois via as estalactites todas partidas, mas nas duas salas maiores, a coisa está quase intacta. Será que qualquer dia construirão grutas em plástico?
Segundo rezam os “placards”, encontraram ali esqueletos e objectos que pensam ter 12.000 anos. Foi descoberta em 1959. Quem achou a gruta, parece que foi um ci­gano, a quem por isso deram dinheiro e um em­prego. Mas que gratidão malvada! Foi logo inte­grado.
Há lá colunas torneadas de tal maneira, que parecem aquelas colunas finas, tipo manuelino, das catedrais. Já o Kan – o inglês ma­ricas – me tinha falado nela.
Outra curiosidade é que, numa das salas, já foram dados espectáculos de “ballet” por vári­as companhias, há 15 ou 16 anos. Tem uma bancada pequena de madeira e os bailarinos dançavam no chão da gruta com cenário de colunas.

A seguir, apanhei boleia até Almuñecar com um desenhador da construção civil, por uma estra­da incrível, cheia de curvas e curvas e ferra­duras, com o mar lá em baixo e que se estende até quase Almeria. O mar lá em baixo e o tipo a acelerar… Fiquei aflito, quando ele perguntou se podíamos “tutear”. Afinal, era só para nos tratarmos por tu.
Almuñecar, vista lá do alto, tem uma grande zona verde, que ele disse serem culturas tropicais: o único sítio da Europa, onde há culturas destas. Pêra-abaca­te e bananas vi eu, mas também havia cartazes a anunciar “cultura de aquacates”, que penso que sejam abacaxis ou da família.
Em todo este bocado de costa, há assim estes vales fechados, com abertura larga para o mar.
Aqui, enquanto esperava por boleia, chegaram entretanto 2 italianas de Tri­este, que, claro, viajam muito mais depressa que eu. Vinham de Marbella e iam para Almeria. Uma tinha uns olhos azuis…! Logo parou uma carrinha para elas, mas como só podia levar uma, elas pediram-lhe para me levar antes a mim.
Assim fui até Motril. Mais estrada acidentada. Paisagem agreste, seca nas serranias, só com os atractivos do mar lá em baixo e da estrada sinuosa. Antes de Motril, vi uma terra muito bonita, com castelo – Salobreña.
Este, também distribui produtos alimentares. Disse que aqui perto de Granada se fazem fil­mes de “cow-boys”. Serão “Westerns-Paella”?
Em Motril, onde dormi, farto das minhas comidas – ai, a cantina da minha Empresa – comi num hostal: bolas, 145 pesetas por uma sopa aguada, uma pinga de vinho, melão e um bifito que vinha sem acompanhamen­to nenhum, se eu não pedisse umas batatas fri­tas.

12º dia – Quarta-feira

Saí ás 10,30 e fui trocar Escudos. Lá conse­gui 1980 Pesetas por 1000 Escudos, no Banco de Bilbao. Um outro não trocava Escudos. Deixei-me chegar à última sem saber se con­seguiria trocar Escudos.
Escrevi aos pais.
Apanhei logo boleia: um viajante que faz propaganda de produtos químicos e aparelha­gem para laboratórios – como eu há 2 anos. Pôs música de Bach, em estereofonia. Logo co­meçou a sinfonia do apertar carinhoso do cinto de segurança e da mão e do toque na perna e de toda a amabilidade. Enquanto houve curvas, a coisa foi bem, mas depois houve uma pa­ragem prolongada por obras na estrada e aí o tipo atacou. Todo ele – Luís – era mostrar-me as “cassetes” que tinha e o mapa de Espanha, todo debruçado sobre mim, com uma mão a fingir segurar as coisas que me mostrava, mas poisada sobre mim.
Compreendo agora como se sente uma miúda ar­mada em séria, quando encontra um tipo armado em apalpador.
Mas há uma grande diferença entre estes e o inglês. Estes, envergonham-se do que são e têm medo que lhes possam levar a mal. O inglês fazia alarde do que era. Se calhar, sai-se melhor que estes. No fundo, todos são carecidos de a­fecto.
Se eu fosse rude com este, para já podia ficar na estrada e por outro lado era doloroso pa­ra ele. Eu sei o que me custa quando encontro a intolerância feminina declarada em vez de recusa implícita.
Peguei-lhe no braço e pu-lo no volante. O ti­po reagiu:
- ”Somos amigos, não?”
- ”Sim, mas não é necessário…”
Acalmou para o resto da viagem. Deixou-me em Adra, mas depois de uma visita levou-me até El Ejido. Falou das grutas de Aracena e da sua “sala de los desnudos”, onde parece haver muitas formas fálicas. Faço ideia do prazer que ele teve em admirá-las.
Embatucou também uma vez quando, tentando ex­citar-me, falou do filme "Emanuelle" e eu disse que o filme estava carregado com a ideologia da classe dominante.
Pôs o Danúbio Azul para eu ouvir.

Estes tipos safam-se da chantagem sexual das mulheres, mas depois vêem-se a braços com a solidão e a dificuldade em encontrar um parceiro sexual ou um pouco de afecto.
Compreendo em parte a chantagem sexual das mulheres. A decadência física, é uma ameaça iminente e real, num mundo de homens interes­sados só no físico e elas ainda não atingiram a mal-empregue independência económica dos homens. Por isso, antes de irem para a cama, fazem uma série de exigências que lhes garantam um mínimo de segurança. Se um tipo é sincero e coerente, está lixado. Que fazer?
Hoje fiz uma concessão à sociedade, concessão essa tanto mais reles quanto foi feita interesseiramente: rapei a barba. Talvez assim os tipos não tenham tanto medo de dar boleia.
É começando nestas concessõezinhas que se acaba por cair nas grandes, tudo em nome da integração na sociedade, integração necessária à sobrevivência a vários níveis. Sociedade, entidade abstracta, que deveria ser uma ajuda para a felicidade de cada um e acaba por ser a algema de cada um. Só se lhe pode escapar com o pulso à custa de muitos sacrifícios, tanto mais dolorosos quanto mais nos habituámos à algema. E o que produz dor obriga a pensar várias vezes, de modo que a decisão de tirar o pulso é indefinidamente adiada, até que a algema sejamos nós mesmos. E o impulso sexual é dos grandes carcereiros deste imen­so campo de concentração. Mesmo quando masca­rado de amor. Bem, adiante.

Em El Ejido estive umas 5 ou 6 horas, até a­noitecer. Perguntei preços num hostal e um tipo que estava lá ofereceu-se para me levar até Almeria. Pouco falámos na viagem.

13º dia - Quinta-feira

Dormi numa “fonda”, que deve ser o mais baixo em hotelaria, antes de casa de huéspedes, hostal, pension, etc.
Fui visitar o Alcazaba – um castelo de mouros. Tantas partes estão reconstruídas, com materiais parecidos, que chego a pensar na burla total, isto é, a RTP faz um castelo de mouros junto à antena de Monsanto, faz lá umas produções e depois inventa umas lendas e põe aquilo com entradas a 10 paus por turista, com um bar de petiscos e bebidas.

Almeria


Comprei uns frutos chamados assafaivas, do tamanho e forma de azeitonas, castanhos quando maduros e que sabem como aqueles frutos dos espinheiros.
Andei um grande pedação a pé até à saída de Almeria. Boleia de 10 km de um tipo que, como todos os outros, perguntou como vão as coisas em Portugal. Desencantadas, como é que hão-de ir?
Boleia de 200 km de um tipo que deve ganhar bem, numa empresa que exporta limões e laranjas. Chegam a ter 20.000 toneladas nas suas várias câmaras frigoríficas, construídas por eles mesmos. O tipo tem um grande receio no qual caíam todas as conversas: a situação política em Espanha.
- “Só um partido é que era bom. Assim, com vários partidos, põem-se todos a discutir e nunca estão de acordo. Franco, sim, agora o rei que se põe a deixar criar partidos…”
Eu não sabia que este não era o rei legítimo, mas sim o seu irmão mais velho, que este matou quando, com 8 anos, brincava com uma espingarda.
Disse também que Villajoyosa foi o local onde desembarcaram os primeiros Iberos. Eu disse que os Iberos exploravam minas de ouro na Andaluzia e ele acrescentou que esse ouro foi levado pelos Russos, durante a Guerra Civil de Espanha. (!) Os Russos devem ser gajos mesmo de mau carácter…
Começam a aparecer por aqui livros que mostram uma certa abertura política, mas também aparecem logo livros como “A corrupção e a prostituição na Rússia de hoje”, a assestar as baterias contra o comunismo, identificando-o com os soviéticos.

perto de Almeria


Na primeira parte da viagem passámos por uma zona extremamente árida. Vi duas cidades “do oeste americano”, onde os tipos rodam alguns filmes. Mostrou-me também o local onde foi filmada uma das batalhas do filme “Cleópatra”, no leito seco dum rio.
Aliás, aqui vêem-se muitos rios, mas todos secos. Nunca chove, e quando chove é de arrasar tudo e matar pessoas de modo que vi coisas giras. Vi várias pontes derrubadas, aquando de alguma grande cheia e, enquanto se não faz outra, a estrada atravessa o leito do rio.
Almeria também tem um rio largo, de modo que o leito seco é aproveitado para fazer um parque infantil e uma pista de aprendizagem automóvel.
Em Alcantarilha, onde fui deixado já de noite, apanhei boleia até Múrcia com um tipo simpático, com ar de trabalhador.
Ah! Múrcia, que tanto me fizeste andar. Enquanto nalgumas cidades se encontram pensões de toda a ordem, por todo o lado, aqui poucas havia e, por isso, todas cheias. Fartei-me de andar para conseguir onde dormir. Por 132 pesetas.

14º dia – Sexta-feira

Estou com cara de bébé-chorão. Deve ser de tan­to leite.
Saí ao meio-dia e a minha vontade era conti­nuar a dormir até ficar satisfeito.
Vi uma velhota que me prendeu muito a atenção. Empurrava um carrinho de bebé carregado de cai­xas de cartão. Na plataforma inferior, ia insta­lado um cão, numa das caixas, outro, sem dar mos­tras de se sentir mal e a pé, preso por um cor­del, um maior. A cada 10 metros, caía uma caixa e lá ia a velhota nas calmas voltar a colocá-la em cima das outras, enquanto os cães, impávidos e serenos, esperavam. Que quadro!

Múrcia


Um pedação a pé até à saída de Múrcia. Tenho que começar a utilizar os autocarros. Boleia de 20 km até Orihuela, dum tipo que acha que há problemas económicos por todo o lado, porque a malta não quer trabalhar. Austeridade é que é preciso. O de ontem tinha medo era do aumento do preço da gasolina. Um deles disse que se estão a fazer con­dutas para trazer água do Tejo para regar a região de Múrcia. (!)
Ia eu a roer um lanche estrada fora, sem pedir boleia, quando parou um tipo que me levou uns 50 km, até Santa Pola, passando por Elche. Quando começam a perguntar o nome, apertar a mão, ajeitar o cinto, perguntar se sou casado, está o caldo entornado. Foi o caso. E era um tipo aí de 26 anos. Disse que gostava de mu­lheres, mas também de homens. Que tinha e tem muitas mulheres, mas que se cansa e então gos­ta de variar. Onde é que eu já ouvi isto? “Como a vida é tão curta, temos de provar de tudo. Cristo disse para nos amarmos uns aos outros”. Que pensava que não gostava, até experimentar. Que se eu experimentasse, também gostava. E toca de mexer.
Se gosta de mexer, que mexa, penso eu, calculando a vantagem duma bo­leia de 50 km. Pareço uma prostituta. Passo por cada uma! : - Um homem a meu lado, a soltar suspiros de amor e a dizer o meu nome, com ar apaixonado. Por este andar, qualquer dia pa­pam-me.
Boleia até Alicante. Muitas palmeiras, que dão uns frutitos pequenos, que não sei como se cha­mam.
Boleia de 3 ou 4 km dum belga que depois me convidou a tomar algo. Não aceitei.
Boleia de mais 4 ou 5 km, dum alemão numa “bruta máqui­na”.
Boleia dum casal jovem até Villajoyosa - 25 km. A estrada ia apinhada e a auto-estrada, ao lado, vazia.
Como já era de noite, apanhei um autocarro (a 1ª vez) até Benidorm, onde fiquei e onde vou aguentar mais um dia por 100 pesetas, com banho e tudo. Aproveitei para fazer uma lava­gem geral de roupa.
A dona do hostal é muito simpática e tem muitas sauda­des de Londres.
O ambiente aqui parece-me muito mais aberto que Marbella e Torremolinos e é mais à base de nórdicos.

15º dia – 18 de Setembro de 1976 (publicado a 18 de Setembro de 2005)

Fui à praia aí pelas 11 horas. É aqui a 50 me­tros e ainda se consegue arranjar um lugar para estender a toalha.

Benidorm


Três horas depois, vim almoçar, pensando voltar, mas fiquei a dormir uma sesta muito agradável e só saí já o sol ia baixo.
Estou aqui no bar do hostal, ao lado duma cerveja, rodeado de ingleses. Aqui os donos do hos­tal, o John e a Eileen, aliás como quase todos os comerciantes ingleses que por aqui estão, são muito simpáticos. Têm as paredes cheias de frases tais como:
“Isto é uma organização não lucrativa. Não foi assim que a planeámos, mas assim acontece.”
“Não façam sexo no bar, a não ser que o “staff” esteja envolvido.”
“Não olhe o “barman” como se ele fosse estúpido. Você devia ver a coisa deste lado!”
“Ladies, rent a pill. Ask barman for details”.
Escrevi ao Granja a perguntar se a Empresa sempre me concedeu a licença de 2 meses sem vencimento que pedi, ou não.

16º dia - Domingo

Saí ao meio-dia. Boleia dum senhor inglês que ensina a sua língua em Valência. Levou-me até a 50 km de Valência – Cullera.
Depois dum café, mostrou-me uma revista pornográfica, com mulheres. Depois dessa, mostrou-me outra com homens. Disse que tem um apartamento ali numa praia e convidou-me para ir lá tomar uma bebida. Entretanto, disse que lá em casa é que tem umas revistas realmente pornográficas. E filmes que traz de Inglaterra e que ele tro­ca com os alunos, por outros que eles têm.
Disse que, às vezes, tem dado boleia a “hippies” que lhe fornecem “ash” (hax?) (haxixe). “Que mais pode querer um tipo, que estar em ca­sa fazendo amor, fumando ash, com uma bebida e boa música?”
Sem que a coisa estivesse bem definida, resolvi desfazer logo equívocos e disse-lhe que me não levasse a mal, mas que só iria se fosse só para uma bebida. É que estou farto de encontrar homossexuais. O tipo riu e disse que estava à espera da “girl-friend” dele, loira de 29 anos. O certo é que tínhamos passado já por vários penduras e, depois de eu dizer isto, ele parou para o 1º que apareceu, deixou-me um pouco mais à frente e seguiu com este. Era um tipo que tinha ido escalar uns montes por ali e trazia uma calça deitada a baixo. Ficou 1 km mais à frente.
Boleia, até Valência, do tipo mais simpático que encontrei em Espanha: natural, conversador, tolerante politicamente. O tipo é engenheiro e trabalha por conta própria. Inteirou-se das minhas posições políticas, criticou-as construtivamente e, depois, galhofámos todo o tempo, pois ele foi tentando construir umas frases em português, francês e inglês.
Boleia de 20 km, até Sagunto, de 2 putos porreiros em Fiat 600.
Levaram também um alemão, ao qual perguntei, que tal de homossexuais. Também encontrou muitos: em Sevilha, ou coisa assim, um tipo levou-o para casa e disse-lhe que tomasse banho, enquanto ele ia buscar uns amigos. Este, tomou banho e pirou-se. Outro, deu-lhe a direcção e o nome dum empresário de Barcelona, para que este entrasse num “show” de “strip-tease”, ou para tirar fotografias.
Ficámos no início duma auto-estrada. O alemão foi pela estrada normal e eu pela auto-estrada. Quero ir depressa. Começo a ficar farto de Espanha.
Boleia de 220 km até 8 km de Tarragona de um tipo que é representante de bolos secos e que todos os dias faz trajectos destes para fiscalizar as vendas e a distribuição.
Boleia longa e maçadora, e para mais começou a escurecer.
O tipo, às vezes, faz moto-cross e automobi­lismo, mas não tem vagar de entrar em provas consecutivas.
Que pena, um tipo tão novo e tão embrenhado no negócio, tão máquina de fazer dinheiro, tão pouco máquina de o gozar, com certeza.
Pedi boleia para Salou, praia do género Beni­dorm, o que significava virar para o mar e afastar-me da direcção que levo. Desisti e virei para Tarrago­na. Uma carrinha para transportar operários levou-me, pois o tipo pensou que eu era um deles.

Nada disso. Eu sou um tipo que não gosta de trabalhar, nem de fazer nada, a não ser uma tarefa da qual colha satisfação pessoal. Até a­gora, não encontrei. Primeiro, tenho de definir o que é e em que se baseia a minha satisfação.
Adiante.

Dei voltas e voltas a Tarragona, mas todas as pensões estavam cheias e as que tinham algo, era da ordem das 200 pesetas.
Ia a caminho duma em que tinham pedido 150, mas por um quartito reles, quando fui interpelado por um bêbado, que me ofereceu dormida. Disse que sabia o que era dormir debaixo duma ponte e ninguém lhe estender uma mão. É pedreiro, Benedicto de nome. Insistiu, mesmo depois de eu dizer que sabia onde dormir. Lá me levou por ruas e ruelas. Foi difícil chegar lá, pois enganava-se nas ruas.
O tipo tem um quarto com 2 camas, mas só paga uma. Então, disse que teríamos que entrar às es­condidas. Que figura!
Entrámos num prédio, subimos todas as escadas, até que ele se convenceu que nos tínhamos enganado no prédio. Voltámos a descer e, finalmente, lá encontrámos o prédio certo. A porta estava fechada. Entrou pelo bar anexo para pedir que lhe abrissem a porta, mas ficou a conversar.
Bem, resolvi ir à minha vi­da e fui a uma pensão que vi ali perto. Cheia.
Quando saí, vi o tipo cá fora. Achei que lhe devia uma explicação pelo meu desapare­cimento e fui ter com ele. O tipo, entretanto, en­trou pela porta já aberta e eu fui atrás dele. Encontrei-o já no 3º andar. Pediu-me silêncio e entrámos. Lá estavam as 2 camas, encostadas a paredes contíguas.
Quando nos estávamos a deitar, o tipo diz que está bêbado e por is­so lhe apetece “chupar-ma”.
Aí temos mais outro, disfarçado de bêbado chateado com a vida e fingindo dar algo sem nada esperar. Será que ninguém é capaz de dar, por dar?
Pediu por favor, que se ia arrepender amanhã, mas que lhe apetecia. Eu fingia que me ia le­vantar e vestir e ele voltava para a cama de­le, mas depois voltava à carga. Entretanto, ia dizendo que, se eu lhe fizesse mal ou lhe rou­basse alguma coisa, me matava amanhã. Finalmente, lá se ficou a ressonar.
Demorei um bocado a adormecer naquela situação estranha, para mais, tendo-me o tipo dito que, se aparecesse a dona da casa, eu me devia meter debaixo da cama, etc.
Hoje, andei 400 km.

17º dia – Segunda-feira

Pelas 8, acordei, fui num pulo à casa de banho, fiz a cama e pirei-me. O tipo acordou, pediu desculpa por ontem e lá ficou.
Desci as escadas mas, cá em baixo, a porta es­tava fechada à chave. Tentei abri-la com um canivete. Nada. Pensei sacar os parafusos da fechadura, mas a chave de fendas estava no fundo do saco. Entretanto, oiço passos a descer as escadas. Que hei-de fazer? Bem, o que for se verá: digo que dormi nas escadas ou coisa assim. São 2 tipos que nem tentam sair pela porta da rua: viram para uma porta na parede lateral a que eu não ligara. Afinal, está aberta e dá para o bar. Atrás deles, já! No bar, já estava o dono atrás do balcão. Saio para a rua nas calmas e sigo sem olhar para trás. Ufff…
Descubro que Tarragona, é uma cidade cheia de monumentos romanos: o forum, o anfiteatro, mura­lhas ibero-romanas. Dou uma volta, vejo a cate­dral, que tem a roseta descaída para um lado, as “Bóvedas Circo” estão fechadas e sigo.

Afinal, não me interessam nem ruínas, nem edifícios, que, embora completos, nada me dizem. Não é isto que eu procuro. Gostava de saber o que é. Isto, esta viagem, é talvez apenas uma fuga no fim da qual está uma corda, ou uma lâmina, ou uma agulha de morfina.
Há quem se mate para fazer valer o seu ponto de vista. Deixam uma carta, acusam a Sociedade, etc., mas o certo é que a Sociedade absorve isso com facilidade e até com gosto: Faz uma noticiazinha, salpicada de cinismo e de humor negro, as pessoas saboreiam, exclamam “mais um fraco que não faz falta nenhuma” e tudo segue em beleza. Adiante.

Boleia até 36 km de Barcelona, dum “revoluça” cá do sítio. Pagou-me uma “botifarra” que é uma espécie de enchido recente de porco, com algo mais, e que se come às rodelas, dentro de pão barrado com tomate. En­che muito. Foi um almoço. O tipo disse que a malta que trabalha precisa disto. “Churros, é para a malta que nada faz”. É representante de vestuário.
Falou-me da situação política de Espanha e em especial da Catalunha, província com características muito especiais, a mais rica de Espanha, com língua própria, língua que foi proibida depois da Guerra Civil, assim como também foi proibido dançar “sardanas”, uma dança típica, com homens e mulheres de mãos dadas em círcu­lo e fazendo uma espécie de sapateado. Diz que houve mais mortes depois da Guerra Civil, que durante ela.
Pôs a tocar o Luís Llack que eu já conhecia e o Juan Manoel Serrat.
Fala dos “tios” que têm tudo nas mãos e não querem largar nada e das manifestações reivindicativas, as quais acabam com tiros e “hóstias”. Fala-me das pirâmides de homens, com 4 e 5 (?!) andares, à base das quais, às vezes, as povoações fazem concursos. Fala-me dos antigos combatentes, como o pintor anarca Santiago Rusiñol, que um vez se pôs a vender “duros” (5 pesetas) a 4 pesetas e ninguém comprava, por desconfiança, ou a vender tachos de barro, apenas a 5 pesetas, mas se alguém queria comprar algum, partia-o. Parece que pretendia provar que as pessoas eram estúpidas e avarentas, mas isso perde-se na neblina da lenda.
Tem a mania que é um dos 3 milhões de espanhóis, que trabalham para os outros 30 milhões de “mamões”. Isto é, candidato a vítima, num futuro próximo.
Deixa-me em Sitges, povoação turística, também. Escrevi aos pais e à Alcina.
Depois de muito tempo, boleia para Barcelona, dum puto muito curioso que me perguntou todos os pormenores do meu actual modo de vida. Só não concordou que eu não procurasse conhecer bem as localidades por onde passo.

Pois é, mas o meu destino é Londres e assim, eu só estou de passagem, tanto fazia ser pelo Sul, como pelo Norte de Espanha. Aliás, nada me interessa. Estar na estrada de braço levantado é um óptimo passatempo que me obriga a esquecer-me do que faço aqui ou que vida é a minha.

Deixou-me no centro de Barcelona e, para meu mal, esqueci-me do livro que estava a ler, no carro. Agora, que estava a entrar na interessante parte das cerimónias de passagem a Puros e a Perfeitos, dos antigos Cátaros.
Ó maldita cidade, que tens todas as pensões cheias e todas a partir do 3º andar. É que muita malta que trabalha aqui, vive nas pensões. Arranjei um duplo, por 135 pesetas.
Dei uma volta por um passeio, estilo avenida da Liberdade, e pela parte velha da cidade. Meti conversa com uma Carmen, que se sentou à minha mesa numa esplanada, que é da Andaluzia, que trabalha como eventual numa oficina, estuda idiomas, me diz que este local é frequentado pela malta progressista, em todos os sentidos, cá do burgo, burgo de 3 milhões. Fala-me da moda do Gay Power dos bi-sexuais ingleses. Diz que falo muito bem espanhol (aliás, não é a primeira pessoa que o diz). Dá-me uma ideia do que há para ver cá no burgo.
Chega um amigo. Falam. Quando volta a falar co­migo, ele levanta-se e vai-se e ela atrás, explicando-lhe, possivelmente, que não há razão para ciúmes.
A dor de cabeça que me assola, desde que andei a subir escadas, só sairá depois de dormir e é isso que faço.

18º dia – Terça-feira

Dou uma volta ao Bairro Gótico. Vejo a Catedral, a Casa do Orfeão, um arco de triunfo romano (?), o Palácio da Justiça, um jardim com uma cascata, um elefante de cimento, graffitis da Joven Guardia Roja, várias igrejas, todas elas cheias de caixas de esmolas para o culto de isto e mais aquilo e para a reconstrução e para tudo.

Penso: Depois do último grande cataclismo que prendeu os homens à Terra, perdida a energia eléctrica, os slides que havia foram ampliados e estilizados em vitrais, para contemplação possível de todos. E as torres são a reminiscência da ligação Terra-Céu, por foguetão.
Estou farto da arquitectura hermética.

Muitas lojas têm letreiros e informações em espanhol e em catalão.
Há um monumento muito bonito, mas que fica longe e está inacabado, porque o arquitecto morreu: Monumento à Sagrada Família.
Deitei-me no quarto e dormi umas horas. Que bom é dormir! Mas uma série de pesadelos com pessoas, aparecem. Que se passa? O homem da tranquilidade está nervoso? Nervoso a dormir e apático acordado.
Estou aqui na esplanada de ontem. A Carmen apareceu, beijou-me, deixou a direcção e foi-se.
Tenho só 150 pesetas. Por isso, amanhã tenho que estar em França.
Estou agora a metade do caminho para Londres, que não sei se será a meta final, pois me parece que não será Londres que me satisfará.
Demorei um bocado a adormecer. Ainda para cúmulo, um tipo no quarto ao lado, que se ouvia distintamente, tossia.

19º dia – Quarta-feira

Ás nove e meia, estava na rua. Um puto com um braço ao peito foi-me indicar a estação de Metro da linha pretendida. Saí na estação do princípio da auto-estrada.
À boleia, estava uma argentina – Maria Esteves – por via da qual arranjei boleia de 40 km, com uma mocita simpática – Maria d’Alba. A argentina falava pelos cotovelos e conquis­tou a d’Alba que nos convidou para tomar o pequeno-almoço. Lá fomos a casa dela beber ca­fé com leite e um pedação de pão barrado com tomate, com chouriço. Tem uma casa porreirinha, um boxer cheio de curiosidade no faro, pois nos cheirou nas partes mais íntimas, e umas tias simpáticas, por cortesia. Muito joinha a d’Alba. A Esteves diz-se estudante de Letras mas, aqui para nós, trabalha num restaurante perto de Madrid e vai agora para as vindimas em França. Visitou a Hungria, da qual diz horrores. Diz que lá não se pode andar à boleia, mas que a comida é baratíssima.
Começou a chover e eu em manga curta!
Boleia de 15 km, outra de 2 km, sempre com a Esteves. Um inglês, farto de esperar, passou por nós a pé. Cada vez que parava um tipo, a Esteves pedia-lhe boleia também para mim e se ele não queria assim, ela também não seguia, dizendo, certamente com alguma razão, que o que ele queria era “acostar-se” com ela.
Boleia de 5 km, mais o inglês. A argentina seguiu, pois ia noutro carro.
Duas boleias de 15 km. Na última, o tipo ia mandar arranjar a fechadura da porta do carro, a qual não fechava. Chegados em frente da oficina, a fechadura já funciona­va e ele voltou para trás. Fui a pé 1 km até uma entrada para a auto-estrada da qual tínha­mos saído com a miúda inicial, a d’Alba.
Boleia dum francês velhote, pouco falador e surdo, que me deixou 10 km para lá de Perpignan. Foi um instante enquanto percorremos os cento e tal km, com paragem na fronteira e tudo.
Pus-me à boleia para Perpignan mas, como não paravam, vim andando a pé, até que achei 11 moedas na berma da estrada, totalizando 6,45 francos. Enquanto es­tava a apanhá-las, um carro derrapou e ia-me apanhando, se eu não tivesse saltado logo uma vala para fora da estrada.
Curioso! Metafisicamente, pensei que, se tinha ido a pé para achar o dinheiro, o objectivo estava alcançado. Assim, levantei o dedo e o 2º carro levou-me a Perpignan. Tipo porreiro, que me indicou os hotéis, os Correios, etc.
Mas bolas, os hotéis são caríssimos, comparados com os hostais espanhóis. Lá consegui uma merda de quarto por 20 francos, ou seja, cerca de 320 Pesetas!
Mas o pior é que fui aos Correios e não tinha nenhuma carta na Posta-restante. Nada. Das 3 possíveis car­tas que esperava, e que eu tinha pedido para me enviarem para aqui, nenhuma apareceu. Nem a que me informaria da resposta ao pedido de 2 me­ses de licença sem vencimento.

E agora? Estou a 8 dias do fim das férias legais…
Procuraram em todos os nomes e nada. Ou me escreveram demasiado tarde ou sem ser por avião (que mesmo assim demoraria 4 ou 5 dias), ou desistiram de escrever, por as minhas cartas chegarem também atrasadas. Se é este o caso, “pior da perna”. Vou telefonar? Deve ser um balúrdio! Vou mandar um telegrama? E entretanto, fico aqui? Mando um telegrama, para es­perar resposta noutro local? E se vêm cartas a caminho? Espe­ro simplesmente? E se, enquanto espero, fosse até às vindimas?
Bolas, os tipos de certeza que me dão os 2 meses, ou não? Certo é que em fim de Novembro, tenho de decidir de vez. Terei que decidir já agora?

Realmente, não me agrada a ideia de voltar ao calorzinho morno e sufocante dum Apollo 70, dum emprego sem chuva nem sol, duma capitalzi­nha de país subdesenvolvido, dum carrinho que chupa 1/7 do ordenado, ordenado que é uma coi­sa que dão às pessoas para elas não morrerem de fome. Sim, em Lisboa morro de fome, fome de amor, fome de compreensão, fome de novidade, fo­me de conhecimento e inteligência, fome de vida. Tinha uma coisa boa – os meus livros – que devorava até ao nascer do sol, sol esse que se ria de mim e me mandava ir dormir, que não fos­se parvo, que olhasse pela janela e comparasse com o que lia nos meus livros, para comprovar que a vida lá fora não tem utopias. Só a amarga realidade da sobrevivência diária para mi­lhares de seres fatalizados.
Agora, com certe­za, não tenho nem terei tempo para livros. Agora arre­pio-me ao pensar nessa luta diária pelo pão, a qual não existia para mim em Lisboa. Mas qual o pão mais saboroso? O que é melhor? Ter pão e morrer por dentro, ou morrer de fome de pão com uma centelha a queimar-me o peito?

Ah! Por esta eu não esperava hoje. Fui obriga­do praticamente a tomar já hoje uma decisão. E de que tamanho! Penso, com alguma saudade, que era melhor voltar, e então sim, sair de vez. Qual a diferença? Para quê adiar mais? Pura per­da de tempo.
Hoje, a minha decisão é: Adeus Lisboa, adeus emprego.

20º dia – Quinta-feira

Que preguiça! Que vontade de me não levantar mais! Quando saí pensava que seriam umas 4 ou 5 horas da tarde. Era 1. Tudo deserto. A malta à hora do almoço fecha tudo.
Fui aos Correios, nada. Nenhuma carta.
O Escudo, onde não está interdito, está a 12,50 a nota de 100 Escudos, isto é, 8 Escudos cada Franco.
Bem, que faço? Se não ganho “algum”, a minha “massa” vai-se num instante e fico sem a certeza de poder regressar a Portugal. No caso de que­rer.
Acabo de conversar com dois putos que estive­ram nas vindimas e um deles vai tentar arran­jar-me um lugar nas vindimas dum parente do patrão dele. Pagam 77 Francos aos cortadores e 96 aos carregadores. Mas devem descontar 20 para dormida e comida. Vou tentar.
Uns momentos antes, estava resolvido a arran­car para Bordeaux, onde as vinhas devem ser “aos montes”. E deixava, aqui na posta-restante, uma ordem para me enviarem qualquer correspondência para outro lugar que eu indicasse. Assim, amanhã à tarde, decidirei.
Entretanto, vou trocar mais mil escudos. Haverá algum problema por eu ser apenas turista? O que for se verá.

Que gozo eu tenho por fazer as minhas refeições no quarto. Isto, porque os tipos têm na porta uma proibição expressa de comer no quarto. Se calhar, queriam que eu fosse a um restau­rante depois de largar 20 Francos por um quarto!
Parece-me que também a comida aqui é mais cara. Inclusive a enlatada. Qualquer lata de atum custa o equivalente a 30 ou 40 Escudos.

E aquele professor do antigo Egipto que dita­va umas frases aos seus alunos! Dizia ele: “O povo egípcio é o mais viril do mundo”. Os alunos lá iam desenhando homens musculosos nos seus papiros… Cábula, um dos alunos pergunta ao colega do lado: “Como é que se escre­ve viril? Com 2 ou 3 testículos?”

21º dia – Sexta-feira

Sonho:
Ambiente: Corredor de entrada dum templo, tal­vez. Tudo em lajes. Perto da porta de pedra ou de ferro, há um banco de pedra, onde estou sentado, mais o Freire (conterrâneo) e o Martins dos Reis (emprego).
Algo nos chama a atenção e, dum varandim alto, cai um grande cadeirão de pedra, que bate nas lajes à nossa frente e ressaltando, vai encra­var-se numa, (talvez já existente) abertura a meia altura, na dita porta. O Martins dos Reis faz-me um sinal, que eu entendo como uma advertência de que o sucedido não era uma simples coincidência, mas sim manifestação de algo mais que existe (sobrenatural). Apesar de ser uma coincidência muito maior do que se ao deixar­mos cair uma moeda num chão liso ela fique em pé no bordo, eu aceno que continua a não ser significativo.
Algo se passa entretanto, que não me lembro. Volta a repetir-se a mesma cena da queda da cadeira, seguida agora de pancadas na porta, depois das quais, uma tranca de ferro salta dos seus encaixes. Eu continuo a negar e vou abrir a porta, para lhes provar que nada exis­te. Ao abrir a porta, entra um senhor com as­pecto de espião (ar de poucos amigos), que me apanha e me espeta uma agulha ou seringa no umbigo. Os outros fogem.
Esta agulha poderia ser também um tubo fino. Acordo e identifico este tubo com o cordão de prata (que nas especulações espíritas liga o corpo ao espírito, quando este se afasta do corpo).

Comprei “Les clés du Nirvana”, do Lobsang Rampa. Até agora, o tipo parece-me um charlatão que teve olho e imaginação.
Troquei 1000 escudos e deram-me 125 francos. Parece brincadeira.
Os putos trouxeram más notícias: se fosse dois dias antes havia vaga, agora não.
Tinha uma carta dos pais. Vá lá!
Tentei arranjar hotel, pois tinha deixado o outro de manhã, mas corri tudo e não arranjei. A maioria estavam cheios e, dos poucos que tinham quarto, o mais barato era 24 FF e todos os outros a 30 – 35. Bolas, recuso-me a dar mais que 20 FF.

Procurava um banco de jardim, para comer e talvez dormir, quando parou um carro, com um tipo que disse que também procurava hotel. Disse que, se não arranjássemos, eu podia dor­mir no carro. Três minutos depois, já me convi­dava para fazer amor com ele na carrinha (R-4) e só depois dor­mir.
- "Non, je n’ aime pas des hommes".
- "Alors, sort, vite".
- "Pas si vite. Vous m’ avais promis, que je pou­vais dormir dans la voiture".

Mas lá saí. Andei um pedação em direcção a Nar­bonne, encontrei uma folhagem sequinha, debaixo dum pinheiro mesmo junto ao alcatrão, e lá fiquei. Entretanto, tinha co­meçado a chuviscar, mas pouquinho.
Às vezes, sou muito teimoso. Desta vez, achei que, por pior que passasse, não daria mais que 20 FF.

Não houve problema de maior. Fazia um ventito, mas pus a mochila desse lado, e não choveu. Ligeiros pingos, só. Um cão admirado, rondou-me.

A meio da noite, depois do primeiro sono, estive um pedaço acordado a pensar, não me lembro agora o quê, mas naquela altura, sentia-me bem, sentia-me, talvez, mais perto da Natureza, ou não sei o quê.

22º dia – Sábado

Apenas começou a haver luz, aí estou eu a caminhar até à saída real de Perpignan.
Até ao meio-dia, nada de boleias. Ainda me deitei mais um pouco, já chateado de pedir.
Depois, um casal espanhol levou-me até Carcassone. Tipos de esquerda. Sabiam muita coisa e falámos imenso do que se foi passando em Portugal.
Agora, não sei o que se passa. Se calhar, já o venderam em lotes, para os americanos atirarem garrafas de Coca-Cola e cuspirem “Chewing-gum”. Altos destinos…!
Em Carcassone, visitei o castelo medieval de cuja existência não suspeitava. Que coisa enorme e genuína. Com este, por certo, não estou a ser enganado. Muitas torres, muralhas e barbacãs. Muitas ruas e casas, por dentro das muralhas.

Carcassone


Despertou-me também a atenção uma igreja que lá existe. As muitas figuras na pedra, por cima das por­tas e em frisos perto do telhado são surpreendentes, em relação ao que tenho visto. Parece-me que é um estilo desta zona. Ou são animais horrendos como sapos, ou caras humanas deformadas tal como as máscaras de Carnaval. Não parece um templo, ou antes, parece um templo sim, mas de magia negra, ou de feitiçaria, ou…
Imensa ventania. Tanta, que para tirar alguns “slides”, tinha que esperar um abrandamento momentâneo, pois, apesar do meu estabilizador-mochila, todo eu abanava.

Muita malta à boleia. Passei alguns 8.
Almocei tranquilamente a vê-los passar (os car­ros) e depois fui até Toulouse, com um alemão em férias.
Isto de um português e um alemão falarem inglês em França torna as coisas um pouco confusas, principalmente se ambos falam mal o inglês. E esta variação constante, ora falando espanhol ora francês ora inglês, leva-me por vezes a não saber momentaneamente onde estou geograficamente situado. Isto acontece também, porque as pessoas pouco variam. São tão banais aqui como em Portugal.
Outra coisa: Sinto falta de discussão. Em Por­tugal discutia, às vezes só para me afirmar, mas, sobretudo, porque é um exercício mental que faz evoluir. Desde que não ponhamos a necessidade de vencer a discussão à frente da procura da verdade. Bem, adiante.

Em Toulouse, arranjei hotel por 12 FF. Assim, está bem!
Voltei a encontrar o alemão e demos uma gran­de volta à cidade. Vimos a catedral de St. Etiènne, que tem a roseta extremamente descentra­da do portal central. Simetria é uma coisa que por ali passou só ao de leve.
O tipo é administrativo dum departamento alemão de investigação agrícola. É porreiro, mas tínhamos dificuldade na língua e, por vezes, tínhamos que nos socorrer de desenhos para nos fazermos compreender mutuamente.
Descobrimos uma coisa linda: Em plena rua, uma pequena orquestra de jovens tocava dois violinos, uma flauta, uma harpa e mais três instrumentos. Música muito suave e viva. Viva, porque ali. Viva, porque não só se ouve, como também se vê. E os tipos eram bons. Dei 2 FF, apesar da minha pouca “massa”.
Será que eles conseguem viver só de esmolas?

23º dia - Domingo

Ao meio-dia, fui dar uma volta à cidade, a que chamam “Ville Rose”. “Ville Rose”, porque as construções são à base de tijolos avermelhados, inclusive as altas ca­tedrais como a de St. Sernin, bastante bonita por fora bastante despida por dentro.

Eu já lera acerca desta catedral, a propósito do ouro lançado a um lago pelos sucessores do exército de Sigoveso o qual havia sido saqueado do templo de Delfos, na Grécia. Aquando do regresso, apa­receu a peste, que foi atribuída à vingança dos Deuses. Então, lançaram o ouro a um lago, que se pensa ter existido no subsolo da actual igreja. (!) Posteriormente, um general romano “sacou” o ouro, que pelos vistos também lhe trouxe desgraça, segundo a versão de Gerard de Sede, na obra “O tesouro cátaro”.

Nos arredores da catedral havia uma imensa feira de trapos sapatos e alimentos, muito frequentada por argelinos e portugueses, pelo que ouvi.
Vi a igreja dos Jacobinos, feiosa, a igreja Daurade, onde estão pintados dois milagres (relacionados com um tremor de terra e um incêndio, à primeira vista). O museu "des Augustins" estava fechado para obras. Voltei à catedral de St. Etienne, na qual me demorei a contemplar umas tapeçarias antigas, representando algumas lendas sobre a vida do primeiro bispo de Toulouse, S. Saturnino e outros tipos.

Pelas 16 horas ou mais, cheguei à saída da ci­dade e apanhei logo boleia para Bordeaux. Nada mau – 250 km. O tipo é um velho retornado da Argélia, novo na idade, pouco falador, estudante de medicina e que ia corrigindo o meu francês.
Ao longo de todo o trajecto, avistei imensas torres de igreja, bonitas do meu ponto de observação.

Era já noite cerrada quando chegámos a Bordeaux, que me pareceu e parece muito triste. A cor é a atirar para o cinzento muito escuro, à noite há poucas pessoas nas ruas e cafés e muitas prostitutas, vestidas com muito mau gosto, todas de calção ou saia no limite superior e botas altas.

Dormi por 17 FF e comi por 15, no mesmo local: Um pedaço de frango, acompanhado em quantidade por uma espécie de farinha granulada + grão + pepino cozido. Chamaram-lhe “Couscous”, de origem argelina. Aliás, isto à noite parece uma cidade de “argelinos”.

Estive a jogar matraquilhos, com um tunisino e um egípcio. Ambos servem numa casa de chá, que tem especialidades argelinas e um disse ganhar lá 150 FF ao mês, mais comida e dormida. Tão pouco? Será que teve medo que eu fosse algum fiscal de impostos?

Escrevi aos pais e ao Serra.

24º dia – segunda-feira

Hoje, pretendia procurar um patrão com vindimas. Informei-me das zonas das vinhas, encontrei um anúncio de procura de vindimadores, mas começou a chover, o meu entusiasmo baixou e eu fiquei-me.

Mudei para um quarto de 14 FF, por indicação duma prostituta.
Fiz um jantar tranquilo. Ontem, é que já me tremiam as mãos com a fraqueza. Fome, não tinha, só exaustão. É enriquecedor conhecer uma exaustão assim. E do mal, o menos. Por enquanto ainda tenho dinheiro no bolso…

Não sei que fazer. Se calhar, vou desistir das vindimas e seguir para Londres.
Mas não deixaria de ser uma experiência interessante! E rendosa! Mas uma coisa é experimentar 2 horas: “Ai, que bonito, que pitoresco!”. Outra, é “vergar” 15 ou 20 dias, sem domingos de folga sequer.
Amanhã, decidirei. Hoje, sinto-me um bocado desamparado. Deve ser do tempo.

25º dia – Terça-feira

As melgas atacaram-me, sem piedade dum pobre adormecido.
Saí ao meio-dia, pensando que já fossem 16 horas.
Telefonei a um pedido de vindimador. Demasiado tarde. Já estavam servidos.
Escrevi ao Granja e ao Bragão – o meu companheiro de casa, a quem, antes de me vir embora, vendi a cama por mim construída com caixotões de madeira prensada, o colchão e outras coisas.
Troquei 1000 Esc. por 130 FF perto duma agência do Banco Pinto e Sotto Mayor (!).

Fui nas calmas para a saída da cidade e quando olhei para o “conta-quilómetros”, espetado na berma da estrada, marcava 5 km.

Boleia de 5 km dum tipo que me levaria para Perigueux mas, à última da hora, desisti e fiquei no cruzamento para Angouléme (direcção mais para noroeste).
Boleia de 15 km dum (mais um) homossexual. Para a próxima faço preço, para ver a reacção.
Boleia de 20 km, até Cavignac, dum puto com o qual falei em espanhol. Vinha duma greve, cansado de “não fazer nada” pois passou o dia a discutir com o patrão. Greve sem futuro, pois alguns colegas não podem aguentar uma greve prolongada.

Todos me dizem que em Cognac é que ainda de­ve haver vindimas em força.
É giro! Imensas povoações aqui da Aquitânia, têm nomes a terminar em Ac. Não me apercebi que terminassem em Oc as povoações do Languedoc – a zona de Perpignan e Toulouse.

Fui às uvas, de uma variedade a cuja doença se deve o sabor do licoroso.
O sol estava a pôr-se, o ambiente era morno, sossegado, rural. Não tenho pressa, por isso quedei-me Chez René – uma pensão de estrada.
Quarto sensacional por 18 FF. Aproveitei para cortar o cabelo no banho.

Vi televisão a cores mas o que vi não me leva a abonar grande coisa em favor da qualidade de imagem da televisão francesa. Que sei eu?

26º dia – Quarta-feira

Porque é que quando nos acontecem coisas fantásticas nos perguntamos se isso não será um sonho? Será porque o quotidiano é quase sempre monótono? Será que só os sonhos podem ser fantásticos? E, na verdade, nem sempre o são. Gostaria de saber a influência da qualidade dos sonhos na vida do indivíduo. Talvez um tipo com sonhos fantásticos tenha mais dificuldade em se adaptar à monotonia do dia-a-dia. Ou o inverso?
Foi isto que pensei ao acordar. Parece-me im­portante fixar a ideia mestra que nos ocorre, ao despertar.

É possível que eu esteja a dormir neste momento, porque o que se passou hoje é dificilmente assimilável pela minha mente. Talvez por isto me dói a cabeça. Preciso de dormir para arru­mar todo este material novo. Nestas férias, tenho tido muita necessidade de dormir.
Mas chega de “suspense”.

Montes de camionistas tinham dor­mido ali e bateram-me à porta, ainda nada se via, pensando que eu era um deles.

Saí ás 10,30. Fui caminhando, comendo uvas e a­preciando os magníficos prados, com vacas a pastar. Tudo tão verde! Que lindo, se Portugal fosse assim!

Boleia até Angouléme, de um mecânico, que ia desempanar um camião. Tipo muito simpático, mui­to falador, e que me deu alguns conselhos. Tão porreiro, que me foi pôr à saída de Angou­léme, tendo depois que voltar atrás. Faz as férias no estrangeiro e já visitou todos os países à volta de França e alguns outros.

Nessa altura, o meu intuito era ir a Cognac, ver se fazia 4 ou 5 dias de vindima.

Sem eu pedir, parou um carro com duas miúdas e um tipo. Atrás Aurora, loura natural, 28 anos, portu­guesa de nascimento, mas a viver em França des­de os 6 anos.
A outra, Caroline, morena, 18 anos, espanhola, diz-se meia-irmã da primeira e trazia um vestido se­mi-transparente, sobre as cuecas e um imenso par de mamas.
Ele, 25 anos, sur­do, come as palavras e parece-me um bocado ingénuo. É padeiro e ganha 2800 por mês.

Quando sabem que quero vindimar, oferecem-se para tentar arranjar-me trabalho na ilha d'Oléron, para onde vão. Ele afiança que arranja.
Parámos num supermercado, para fazer compras. Eu peguei em azeitonas, leite e pão e eles que­riam pagar-mos. Recusei.
Em andamento, enganavam-se nas estradas, mas não invertiam a marcha, seguiam sempre. Cada vez que éramos seguidos por um carro conduzido por homens, elas faziam uma fita enorme, mandavam-lhe beijos, faziam caretas, faziam-lhe manguitos, etc. Finalmente, chegámos à ilha, ligada ao continente por uma ponte de 3 ou 4 km.

Levaram-me para casa dele e fizeram jantar requintado, com coe­lho e entradas. A seguir, o tipo levou-me a falar com um português que trabalha por conta própria, a construir tonéis para vinho, alguns com 15 metros de perímetro. Este – o Carlos – tem dinheiro, pelos vistos, mas vive à portuguesa. Conhece muitos fazendeiros, claro, e levou-me a um que estava completo e a outro que possivelmente sim, me empregava. O padeiro falava pelos cotovelos e não cessava de referir que tinha em casa duas “copinnes” (± amigas).
Elas tinham ficado a arranjar-se e, quando voltámos, ele levou-as a uma festa e veio deitar-se. Tinham dito que eu podia dor­mir numa tenda que eles têm, mas acabei por dormir com o tipo. Sim, que por mais que eu pudesse pensar em “afiar o dente”, nem o padeiro petisca. Ele até tem medo de tocar-lhes pois, cada vez que o faz, apanha. Elas dormem numa ca­ma e eu mais o padeiro dormímos noutra, a prin­cípio com a companhia dum cachorrito alemão que ele adora e ao qual dá beijos no focinho.

É tudo isto que me faz confusão. Quão longe eu ou alguém está de apanhar um tipo na estrada e o meter na mesma cama! A não ser os andaluzes, que o fariam de bom grado, por outros motivos…

27º dia – Quinta-feira

Toda a manhã o cachorro andou pela casa toda, a roer sapatos e trapos, a mijar no soalho e a rosnar.

Levantámo-nos e fomos confirmar a vindima. O tipo de ontem disse que afinal não pode aceitar-me, pois tinham chegado todos os vindimadores que esperava (ou será outro motivo?), mas levou-nos ao sogro que me aceitou. Começo amanhã e ele pensa que a vindima dele demorará 25 di­as.
Mas tudo isto é incrível! Então vou vin­dimar 25 dias?
Um vizinho deste disse que aceita as duas miúdas para vindimar.
Voltámos, elas ainda dormiam.

O padeiro tem uma casa cheia de todos os electrodomésticos, várias arcas congeladoras gran­des, pois às vezes vende gelo, compra tudo o que é bom (está sempre a mostrar coisas e a dizer: «Isto custou X - é caro!!» ) mas a sanita é num cubículo no quintal. Tem este quintal com galinhas e uma horta com pombos e hortaliça vária. Colhemos lá tomates e fizemos uma salada esquisita.

Escrevi ao Granja, ao Duarte, ao Henriques (colegas de emprego) e à minha irmã e ordenei a recuperação de qualquer correspondência que vá dirigida a Perpignan, até daqui a uma semana.

Finalmente, elas levantaram-se. Insistiram em tirar-me fotografias, uma das quais com a loura ao colo. Fotografia Polaroid ou seja 34 FF cada 8. Máquina do padeiro, claro, mas recusaram ser fo­tografadas com ele. Pobre tipo, está a ser chupado até aos atacadores e não leva nada.
Tratam-no com rudeza. Dizem-lhe: «Vai comprar isto – e ele vai…». Está dominado, até que se aperceba que está.
Ele vai-me dizendo: «Uma, sim, duas não – c’est cher!» Elas falam baixo para ele não perceber mas eu oiço bem e elas ignoram que eu perce­bo melhor do que falo.
A situação tem prós: Elas lavam o chão, cozinham bem e dão-lhe alguma alegria e, sobretudo, companhia.
Segundo me apercebi, do que ele foi dizendo, encontrou-as numa “boite”. Quei­xaram-se que os pais as tinham posto à porta e ele, coração grande, abriu-se. Parece-me que a loira, se lhes colou depois. É a mais sabidona e a outra ouve-a com atenção.

Fiquei com as minhas dúvidas acerca do opor­tunismo delas, pois aceitaram ir para as vin­dimas. (No dia seguinte fiquei a saber que não. Foram traba­lhar a manhã e não voltaram a aparecer. O tipo, sim, ficou a trabalhar 2 dias, até ao fi­nal das férias dele.)

Ao fim e ao cabo, não me posso queixar delas. Tratam-me extremamente bem, arranjaram-me tra­balho, são camaradas, mas a carteira do padeiro é que se lixa.

Ajudei um pouco a fazer o jantar, cujo prato forte foi peru no forno, mas houve ainda aperitivos, entradas, queijo e café.

Foram-me levar ao patrão, que me meteu num quarto limpo com casa de banho bestial. A cama é que é terrível: molas que rangem e se espetam nas costelas. Desisti do travesseiro (como sempre) e, como é comprido e largo, meti-o na cova do meio da cama por baixo do lençol. Ficou razoável.
Há pelas paredes pelo menos quatro grandes aranhas que espero me ajudem a caçar as melgas.
O silêncio é grande. Só se ouve o vento.

28º dia – 1 de Outubro

Chamaram-me ás 7,30, deram-me o pequeno-almoço e umas galochas, e aí vou eu no tractor. Fim de férias – dia de trabalho, não é?

Deram-me uma tesoura de poda e lá andei eu, feito desalmado, todo o dia a cortar uvas, como se fosse de empreitada.
Não sei porque o fiz. Ao fim e ao cabo, este é também um patrão. Mas:
• Sinto-me muito bem pago (penso que são 54 FF, limpos)
• Tenho imenso medo que me chamem mandrião
• Há que defender a fama dos portugueses (como sou incoerente)
• Estou furioso. Ou nervoso.
A princípio, via-me aflito para conseguir cortar o pé das uvas, às vezes muito emaranhadas e abundantes. Depois, fui-me apercebendo de como se fazia. Até a cortar uvas é preciso experiência!

Somos 12 pessoas, das quais 7 mulheres, à mais solteira das quais não desagrado. Todo o dia falam dos maridos e dos namorados e de casamentos e do resto, numa imensa galhofa maliciosa.

Hoje, colhemos as zonas onde as uvas estão já podres. Mas podres mesmo, a desfazerem-se, com mosquitos agarrados e bolor. Dizem eles que é com estas que se faz o melhor “Pinot” (vinho muito doce, tipo jeropiga). E é bom mesmo, que já me deram a beber.
Mas o problema não é só o podre: Colhemos para cerca de 80 caldeiros (baldes). Caldeiros pelo chão. Terra agarrada. Quando o tractor passa, (tractor especial para vinhas, de rodas altas que passam de cada lado duma fila de videiras presas por fios de arame, fila essa que não é afectada pelo tractor), eu e outro despejamos os caldeiros dentro do atrelado, que é estanque. Se está muito cheio, vai um de botas sujas lá para cima.
Na adega, as uvas são caldeadas à pá para uma máquina que esmaga e lança o engaço para um escorredouro rotativo, lento, do qual cai o sumo e toda a merda dissolvida, para um tanque não muito limpo. Daí, é bombeado para 7 enormes pipas.

Pensar que tanta merda, pode fazer vinho tão bom!
Afinal, o que é a uva? É terra e estrume que passou pelo transformador biológico, via água, a frutose. Irá haver outra transformação deste açúcar em álcool. (E de álcool em ácido acético, se houver condições).
E o que é o vinho? Merda. Sim, merda de levedura.
A levedura, é um “bichinho” muito parecido com o homem. Ela come açúcar (se calhar é um factor de promoção social), vai-se reproduzindo, (se calhar porque é hábito, ou por imaginária auto-continuação) e, possivelmente, vai-se perguntando qual a finalidade da vida, sem se aperceber que está a fazer vinho e que muito em breve irá morrer sufocada ou afogada na sua própria merda – o álcool.

Por falar em merda, o almoço foi porreiro. O jantar, menos.
Deixei o leite. Agora bebo vinho. Até na sopa o deitam.
Monsieur Ricou, o patrão, é extremamente amável comigo e até brandy me oferece. Viva o patronato. É assim que eu posso vir a ser promovido a servo perpétuo.
É um camponês, é diferente um pouco.
Eu e mais dois outros servos comemos à mesma mesa dele. Os outros foram comer a casa. Uma coisa que me chateia é que insistem para ser o primeiro a servir-me.

Não sei se vou aguentar muito tempo. Cada vez que me torço, só se ouvem estalos. Dói-me um bocado a dobradiça das costas. É que aquilo é feito quase só de cócoras. O mais grave é que os meus pés estão insensíveis, por estase, ou lá o que é.

Pouco falei e pouco descansei.
Há várias formas de se ganhar consideração. Falar pouco é uma delas. Felizmente, sou assim por natureza. Mas, parece que lhes não agradou muito.
Chega de conversa fiada.

29º dia - Sábado

Estava com imenso sono e vontade de me não levantar, mas ouvi lá fora uma bátega de água e, por estranho que seja, levantei-me logo. É que a chuva é uma mudança no quotidiano.
Ajudei a esvaziar o reboque do tractor, à páza­da. É cansativo. Depois, uvas e mais uvas. Tenho as mãos com nódoas de vinho, que não saem com sabão.
Choveu um pouco de manhã, mas o tipo fornece-nos impermeáveis. O meu aspecto era: galochas, calções e ca­misola de gola alta. Que figurão!

Hoje o meu ritmo foi um pouco mais lento e is­so, ou a maior abundância de uvas na minha fila, atrasava-me um pouco em relação aos outros. A manhã parecia que nunca mais acabava. As do­res nas costas tornavam-se insuportáveis (e não é uma palavra gratuita). Quando fui vazar os baldes para o tractor, o cansaço era grande. Parecia um levantador de pesos no seu limite.
Voltei a colher uvas e o meu repúdio pelo que estava a fazer atingiu um grau tal, que estava a pensar a sério em dizer ao tipo que não aguentava mais e me ia embora. Isso não fiz, mas as lágrimas assomaram-me aos olhos e o meu ros­to devia ser um esgar. Apesar de andar de cabe­ça baixa, tenho a impressão que uma miúda se aperce­beu do meu estado.
Ao almoço, fui a pé até à casa e deitei-me em cima da cama. Adormeci logo.

De tarde, adoptei a técnica de me endireitar de vez em quando. Penso que ajuda a lubrificar as dobradiças, e não há dúvida de que aguentei melhor. Foi com grande alegria que acabei o trabalho, por ter conseguido aguentar.

As pessoas são bestiais. Tratam-me porreiramente. Ao fim do dia, o patrão leva-nos à adega a beber um copo “do doce” e a cavaquear. É um convívio bestialmente são.
Pensei que certos tipos, também contratados, me vissem com maus olhos por eu, sem papéis, lhes diminuir os dias de trabalho, mas não.
Há um velhote da zona, que só fala “patois” (patoá) e que é bastante castiço, tanto a falar como a rir.

As miúdas loucas – a Aurora e a Caroline – apareceram a buscar o padei­ro, todas janotas. Convidaram-me para ir a uma “boite”, esta noite. Quando eu disse que 20 FF era quase meio-dia de trabalho, ofereceram-se para pagar metade, mas o certo é que não apa­receram, possivelmente porque o padeiro, que já tinha torcido o nariz, não foi na fita.
Às 11, adormeci.

30º dia – Domingo – dia de descanso

Fui atacado por melgas e percevejos!
Pensando que fossem 16 horas, quando me levantei, eram só 11 ou 12. Nunca sei ao certo, pois os tipos têm duas horas diferentes.

Fui dar uma volta de bicicleta emprestada pelo patrão. Andei uns 8 km. O mar fica a 2 km daqui, com praias, ostras, um portinho colorido e uma capela moder­na, muito curiosa. Triangular. Assim:




A capela é baixinha, muito acolhedora e o tecto é todo suportado por imensas vigas de madeira que formam um emaranhado bonito.

Com isto tudo, cheguei atrasado ao almoço que foi de festa. Além da entrada de pedacinhos de carne, ovo, batata e tomate, houve pato com batatas fritas, pudim, bolo seco caseiro, vinho espumoso da casa, cigarrilha e café com brandy. Não me posso queixar!

Apesar de o patrão me ter dado à escolha uma mobylette ou uma bicicleta para passear, foi nesta que fui dar uma grande volta de uns 20 km pela ilha. É muito girinha, cheia de vinhas e pastos verdes com vacas, tudo mui­to calmo, sossegado, excepto pelos tiros dos caçadores, pois há imensos coelhos.
É agradável fazer assim uma volta tranquila, a co­mer uvas sempre que apetece, mas as minhas pernas já não estão muito habituadas a estas andanças, como dantes estavam.
Passei pela casa do padeiro – não havia ninguém. Dei a volta, entrei para o quintal e vi que tinham almoçado 5 pessoas. Pobre padeiro, bem pode montar um restaurante!

Li um pedaço do livro do Lobsang Rampa. Que grande charlatão o gajo me saiu. Exprime uma dúzia de opi­niões pessoais e vende um montão de livros, pseudo-iniciáticos!

À noite, a seguir ao jantar, ficamos sempre um bocado a ver televisão.
Uma filha de Mr. Ricou, Josiane, é que faz as refeições, sempre caseiras, sempre agradáveis. Ontem, sem eu pedir, passou a ferro a roupa que eu tinha posto a enxugar!

Lá fora, chove. Ainda bem que é só de noite.

31º dia – Segunda-feira

Não é só de noite, não. A «mudança no quotidiano» caiu-me em cima toda a manhã. Apesar do impermeável, é muito desagradável vindimar à chuva, ainda por cima em calções e a água a escorrer para dentro das galochas. Tenho umas calças compridas mas tenho-as guardado para vestir depois do trabalho.

Que puta de vida arranjei. Já tenho saudades do meu emprego morno. Possivelmente, só espero até que cheguem cartas e arranco. Lá para sexta ou sábado. Esperava já hoje as cartas de Perpignan, mas não veio nenhuma.

Apenas terminámos, tomei um banho quente e deitei-me.
Ao jantar, comi muito mais que de costume. Tinha uma fome…

Tenho a impressão que o comer muitas uvas me faz mal. É dos sulfatos.
Estou farto disto.

32º dia – Terça-feira

Os tipos, aqui, em vez de falarem em Francos, falam em “balles” – os Francos antigos. É uma confusão para eu saber converter com rapidez certas somas. Por exemplo: Douze mille balles…(*)
Já alguns espanhóis falavam em duros, em vez de pesetas. Por exemplo 14 duros são 70 pesetas, porque o “duro” é a moeda de 5 pesetas.

Choveu até às 10 e de tarde a partir das 3 e meia. Largámos um pouco mais cedo, pois estava já muito escuro, devido ao tempo.

Mais um dia sem cartas e o trabalho está a ser muito monótono negativamente. Estou farto de chuva e dores nos rins. Ainda por cima, 3 miúdas estão a tratar-me de ponta. Se calhar não lhes agrada o meu mutismo e disseram que eu não podia estar a trabalhar. Dá-me a impressão que se chateiam por eu estar de férias e vir trabalhar para aqui, enquanto elas ficam em casa, no resto do ano.
O tempo ajuda ao mau humor, pois com chuva não há piadas, gracejos e risos. Estou farto. Mas que faço?

Sacana de serviço de Correios. Vou dizer ao tipo que parto, apenas receba cartas.

À noite, ofereci um pedaço do paio que ainda me resta da merenda que trouxe de Portugal. Acharam bom, claro.
Houve crepes e vinho espumoso. Ao almoço tinha havido um divinal coelho com batatas e cenoura. Não tão saboroso como o que a minha mãe faz…

Têm um cão – Caprice – muito meigo e com uns olhos muito humanos. Preto com manchas ruças.

(*) – 120 Francos novos, já que 1 novo passou a valer 100 Francos antigos em 1960.

33º dia – Quarta-feira

A seguir ao pequeno-almoço, disse a Mr. Ricou que isto é muito duro e que me vou embora assim que receba as cartas que espero. Ficou um pouco triste (chateado sem mostrar), pois “toda a gente sabe que as vindimas são duras” e que an­teontem rejeitou um vindimador e que, além disso, o castiço que fala patoá (Valére), não apareceu desde sábado. Parece que não regula muito bem.

O dia esteve sensacional, com muito sol. Que ra­io de tempo caprichoso!
De tarde, descalcei-me, o que foi extremamente agradável, pois as botas magoam-me e a terra estava fresca.

Falei um pouco com a Marina e a Dani­elle, para mostrar que não sou antipático, lá porque me mantenho calado. Aliás, já vou percebendo melhor o que dizem e já vou falando, embora com difi­culdades.
A Danielle disse que amanhã há greve geral, pois os trabalhadores do campo não querem ser os únicos a pagar o prejuízo da seca.

Os tipos(as), quando se encontram, dão 3 beijos na face e, quando a amizade é maior, 4.

Há uma, que passa o dia inteiro a peidar-se em alto e bom som.

34º dia – Quinta-feira

Sonhei que os filhos da minha avó estavam todos sentados em semi-círculo à volta da minha avó e depois um deles levantou-se e beijou a fronte da mãe. (?)

Não trabalhámos a manhã, mas houve abastecimento de electricidade e outros serviços, por certo. “A greve geral é lá nas grandes cidades” – diz o patrão.

Entretive-me a observar uma tartaruga que o tipo tem e que deambula aqui pelo quintal. Comeu ervas, sem medo de mim.

A tarde foi fácil. Sou quase um vindimador profissional. A tesoura já vai automaticamente ao sítio certo, sem ter de tactear. E o sítio certo é o pé principal da uva, que eu já descubro com facilidade, apesar do emaranhado das folhas, dos troncos e dos arames.
Ponho um balde de cada lado da fila, colho do meu lado o grosso das uvas e depois debruço-me do outro lado, com o balde à mão. Só eu faço isto e tenho a certeza que poupo tempo. Colho a minha fila, desloco os meus baldes e os da fila do lado para a fila vizinha da do tractor e depois, ao despejar, “amando” uma fila de baldes lá para cima. Isto é que é fatigante à grande.
As minhas costas estão duras.

Os tipos, por tudo e por nada, exclamam: “Ah! Putain!” ou “Ah! Couillon!”

Um pé que torci ao almoço dói-me à grande, agravado talvez pelo frio do andar descalço. Agora já estou um pouco disposto a esperar pelas cartas, mesmo que demorem mais 8 dias.

Fui na brasa a St. Pierre d’Óleron e comprei “Le dossier des influences cosmiques”, pois já acabei o que andava a ler.

Chegou ontem a mulher do patrão, que esteve 3 semanas no hospital. O genro é rebocador de gesso e a filha (que nos dá de comer), trata também dos 2 miúdos, o mais pequeno dos quais fica por vezes longo tempo a olhar para mim.

35º dia – Sexta-feira

O que é que eu posso dizer? Foi um dia igual aos outros. Conversei um pouco mais com a Da­nielle.
O patrão faz todos os anos 70.000 litros de vinho.

Desconfio que o pretenso ataque de percevejos, não existe. É possível que sejam distúrbios circulatórios.

Continua a não haver cartas. Escrevi à Orlanda ao Hélder e ao tio Xico.

Meditei um bocado sobre as frequências luminosas: As árvores precisam de luz. Se a absorvessem toda, vê-las-íamos negras. Seria que os namorados continuariam enfeitiçados, agora pelo negro?

Quanto mais baixa é a frequência, mais facilmente é retida por um obstáculo. Com uma visão na banda dos infra-vermelhos, o ar seria uma poeirada incrível, de dia. Talvez assim pudéssemos ver a aura das pessoas e doutros seres mais subtis que nós.
Se os nossos olhos captassem numa frequência superior à dos raios X, não veríamos os vidros, nem as folhas das árvores, nem a água. A água seria pa­ra nós o mesmo que é agora o ar.

O céu é vermelho de manhã e à tarde, devido à refracção da luz do Sol nas camadas atmosféricas. Sabemos que cada frequência que compõe a luz se refracta diferentemente. A prova, dá-a o arco-íris.

Será possível que estejamos tão mal apetrechados em aparelhos perceptores do mundo que nos rodeia? Temos o ouvido que capta uma banda de frequências razoável, mas modesta ainda assim. Temos o olho que capta uma pequeníssima banda de frequências (+-400 - 700 milimicra). Temos o tacto que, especulando, poderá captar também frequências de ondas.
E todo o resto? As ondas de km? As ondas intermédias entre o ouvido e a visão? As ondas pequeníssimas, como o raio X e os raios cósmicos?

Poderemos especular que a telepatia seja o efeito dum órgão rudimentar que possuamos, órgão esse que capta frequências diferentes das da luz e das do som. (Mais altas que as da luz, certamente).

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