Completo. Lê-se de cima para baixo

19º dia – Quarta-feira

Ás nove e meia, estava na rua. Um puto com um braço ao peito foi-me indicar a estação de Metro da linha pretendida. Saí na estação do princípio da auto-estrada.
À boleia, estava uma argentina – Maria Esteves – por via da qual arranjei boleia de 40 km, com uma mocita simpática – Maria d’Alba. A argentina falava pelos cotovelos e conquis­tou a d’Alba que nos convidou para tomar o pequeno-almoço. Lá fomos a casa dela beber ca­fé com leite e um pedação de pão barrado com tomate, com chouriço. Tem uma casa porreirinha, um boxer cheio de curiosidade no faro, pois nos cheirou nas partes mais íntimas, e umas tias simpáticas, por cortesia. Muito joinha a d’Alba. A Esteves diz-se estudante de Letras mas, aqui para nós, trabalha num restaurante perto de Madrid e vai agora para as vindimas em França. Visitou a Hungria, da qual diz horrores. Diz que lá não se pode andar à boleia, mas que a comida é baratíssima.
Começou a chover e eu em manga curta!
Boleia de 15 km, outra de 2 km, sempre com a Esteves. Um inglês, farto de esperar, passou por nós a pé. Cada vez que parava um tipo, a Esteves pedia-lhe boleia também para mim e se ele não queria assim, ela também não seguia, dizendo, certamente com alguma razão, que o que ele queria era “acostar-se” com ela.
Boleia de 5 km, mais o inglês. A argentina seguiu, pois ia noutro carro.
Duas boleias de 15 km. Na última, o tipo ia mandar arranjar a fechadura da porta do carro, a qual não fechava. Chegados em frente da oficina, a fechadura já funciona­va e ele voltou para trás. Fui a pé 1 km até uma entrada para a auto-estrada da qual tínha­mos saído com a miúda inicial, a d’Alba.
Boleia dum francês velhote, pouco falador e surdo, que me deixou 10 km para lá de Perpignan. Foi um instante enquanto percorremos os cento e tal km, com paragem na fronteira e tudo.
Pus-me à boleia para Perpignan mas, como não paravam, vim andando a pé, até que achei 11 moedas na berma da estrada, totalizando 6,45 francos. Enquanto es­tava a apanhá-las, um carro derrapou e ia-me apanhando, se eu não tivesse saltado logo uma vala para fora da estrada.
Curioso! Metafisicamente, pensei que, se tinha ido a pé para achar o dinheiro, o objectivo estava alcançado. Assim, levantei o dedo e o 2º carro levou-me a Perpignan. Tipo porreiro, que me indicou os hotéis, os Correios, etc.
Mas bolas, os hotéis são caríssimos, comparados com os hostais espanhóis. Lá consegui uma merda de quarto por 20 francos, ou seja, cerca de 320 Pesetas!
Mas o pior é que fui aos Correios e não tinha nenhuma carta na Posta-restante. Nada. Das 3 possíveis car­tas que esperava, e que eu tinha pedido para me enviarem para aqui, nenhuma apareceu. Nem a que me informaria da resposta ao pedido de 2 me­ses de licença sem vencimento.

E agora? Estou a 8 dias do fim das férias legais…
Procuraram em todos os nomes e nada. Ou me escreveram demasiado tarde ou sem ser por avião (que mesmo assim demoraria 4 ou 5 dias), ou desistiram de escrever, por as minhas cartas chegarem também atrasadas. Se é este o caso, “pior da perna”. Vou telefonar? Deve ser um balúrdio! Vou mandar um telegrama? E entretanto, fico aqui? Mando um telegrama, para es­perar resposta noutro local? E se vêm cartas a caminho? Espe­ro simplesmente? E se, enquanto espero, fosse até às vindimas?
Bolas, os tipos de certeza que me dão os 2 meses, ou não? Certo é que em fim de Novembro, tenho de decidir de vez. Terei que decidir já agora?

Realmente, não me agrada a ideia de voltar ao calorzinho morno e sufocante dum Apollo 70, dum emprego sem chuva nem sol, duma capitalzi­nha de país subdesenvolvido, dum carrinho que chupa 1/7 do ordenado, ordenado que é uma coi­sa que dão às pessoas para elas não morrerem de fome. Sim, em Lisboa morro de fome, fome de amor, fome de compreensão, fome de novidade, fo­me de conhecimento e inteligência, fome de vida. Tinha uma coisa boa – os meus livros – que devorava até ao nascer do sol, sol esse que se ria de mim e me mandava ir dormir, que não fos­se parvo, que olhasse pela janela e comparasse com o que lia nos meus livros, para comprovar que a vida lá fora não tem utopias. Só a amarga realidade da sobrevivência diária para mi­lhares de seres fatalizados.
Agora, com certe­za, não tenho nem terei tempo para livros. Agora arre­pio-me ao pensar nessa luta diária pelo pão, a qual não existia para mim em Lisboa. Mas qual o pão mais saboroso? O que é melhor? Ter pão e morrer por dentro, ou morrer de fome de pão com uma centelha a queimar-me o peito?

Ah! Por esta eu não esperava hoje. Fui obriga­do praticamente a tomar já hoje uma decisão. E de que tamanho! Penso, com alguma saudade, que era melhor voltar, e então sim, sair de vez. Qual a diferença? Para quê adiar mais? Pura per­da de tempo.
Hoje, a minha decisão é: Adeus Lisboa, adeus emprego.

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