Completo. Lê-se de cima para baixo

28º dia – 1 de Outubro

Chamaram-me ás 7,30, deram-me o pequeno-almoço e umas galochas, e aí vou eu no tractor. Fim de férias – dia de trabalho, não é?

Deram-me uma tesoura de poda e lá andei eu, feito desalmado, todo o dia a cortar uvas, como se fosse de empreitada.
Não sei porque o fiz. Ao fim e ao cabo, este é também um patrão. Mas:
• Sinto-me muito bem pago (penso que são 54 FF, limpos)
• Tenho imenso medo que me chamem mandrião
• Há que defender a fama dos portugueses (como sou incoerente)
• Estou furioso. Ou nervoso.
A princípio, via-me aflito para conseguir cortar o pé das uvas, às vezes muito emaranhadas e abundantes. Depois, fui-me apercebendo de como se fazia. Até a cortar uvas é preciso experiência!

Somos 12 pessoas, das quais 7 mulheres, à mais solteira das quais não desagrado. Todo o dia falam dos maridos e dos namorados e de casamentos e do resto, numa imensa galhofa maliciosa.

Hoje, colhemos as zonas onde as uvas estão já podres. Mas podres mesmo, a desfazerem-se, com mosquitos agarrados e bolor. Dizem eles que é com estas que se faz o melhor “Pinot” (vinho muito doce, tipo jeropiga). E é bom mesmo, que já me deram a beber.
Mas o problema não é só o podre: Colhemos para cerca de 80 caldeiros (baldes). Caldeiros pelo chão. Terra agarrada. Quando o tractor passa, (tractor especial para vinhas, de rodas altas que passam de cada lado duma fila de videiras presas por fios de arame, fila essa que não é afectada pelo tractor), eu e outro despejamos os caldeiros dentro do atrelado, que é estanque. Se está muito cheio, vai um de botas sujas lá para cima.
Na adega, as uvas são caldeadas à pá para uma máquina que esmaga e lança o engaço para um escorredouro rotativo, lento, do qual cai o sumo e toda a merda dissolvida, para um tanque não muito limpo. Daí, é bombeado para 7 enormes pipas.

Pensar que tanta merda, pode fazer vinho tão bom!
Afinal, o que é a uva? É terra e estrume que passou pelo transformador biológico, via água, a frutose. Irá haver outra transformação deste açúcar em álcool. (E de álcool em ácido acético, se houver condições).
E o que é o vinho? Merda. Sim, merda de levedura.
A levedura, é um “bichinho” muito parecido com o homem. Ela come açúcar (se calhar é um factor de promoção social), vai-se reproduzindo, (se calhar porque é hábito, ou por imaginária auto-continuação) e, possivelmente, vai-se perguntando qual a finalidade da vida, sem se aperceber que está a fazer vinho e que muito em breve irá morrer sufocada ou afogada na sua própria merda – o álcool.

Por falar em merda, o almoço foi porreiro. O jantar, menos.
Deixei o leite. Agora bebo vinho. Até na sopa o deitam.
Monsieur Ricou, o patrão, é extremamente amável comigo e até brandy me oferece. Viva o patronato. É assim que eu posso vir a ser promovido a servo perpétuo.
É um camponês, é diferente um pouco.
Eu e mais dois outros servos comemos à mesma mesa dele. Os outros foram comer a casa. Uma coisa que me chateia é que insistem para ser o primeiro a servir-me.

Não sei se vou aguentar muito tempo. Cada vez que me torço, só se ouvem estalos. Dói-me um bocado a dobradiça das costas. É que aquilo é feito quase só de cócoras. O mais grave é que os meus pés estão insensíveis, por estase, ou lá o que é.

Pouco falei e pouco descansei.
Há várias formas de se ganhar consideração. Falar pouco é uma delas. Felizmente, sou assim por natureza. Mas, parece que lhes não agradou muito.
Chega de conversa fiada.

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