Completo. Lê-se de cima para baixo

17º dia – Segunda-feira

Pelas 8, acordei, fui num pulo à casa de banho, fiz a cama e pirei-me. O tipo acordou, pediu desculpa por ontem e lá ficou.
Desci as escadas mas, cá em baixo, a porta es­tava fechada à chave. Tentei abri-la com um canivete. Nada. Pensei sacar os parafusos da fechadura, mas a chave de fendas estava no fundo do saco. Entretanto, oiço passos a descer as escadas. Que hei-de fazer? Bem, o que for se verá: digo que dormi nas escadas ou coisa assim. São 2 tipos que nem tentam sair pela porta da rua: viram para uma porta na parede lateral a que eu não ligara. Afinal, está aberta e dá para o bar. Atrás deles, já! No bar, já estava o dono atrás do balcão. Saio para a rua nas calmas e sigo sem olhar para trás. Ufff…
Descubro que Tarragona, é uma cidade cheia de monumentos romanos: o forum, o anfiteatro, mura­lhas ibero-romanas. Dou uma volta, vejo a cate­dral, que tem a roseta descaída para um lado, as “Bóvedas Circo” estão fechadas e sigo.

Afinal, não me interessam nem ruínas, nem edifícios, que, embora completos, nada me dizem. Não é isto que eu procuro. Gostava de saber o que é. Isto, esta viagem, é talvez apenas uma fuga no fim da qual está uma corda, ou uma lâmina, ou uma agulha de morfina.
Há quem se mate para fazer valer o seu ponto de vista. Deixam uma carta, acusam a Sociedade, etc., mas o certo é que a Sociedade absorve isso com facilidade e até com gosto: Faz uma noticiazinha, salpicada de cinismo e de humor negro, as pessoas saboreiam, exclamam “mais um fraco que não faz falta nenhuma” e tudo segue em beleza. Adiante.

Boleia até 36 km de Barcelona, dum “revoluça” cá do sítio. Pagou-me uma “botifarra” que é uma espécie de enchido recente de porco, com algo mais, e que se come às rodelas, dentro de pão barrado com tomate. En­che muito. Foi um almoço. O tipo disse que a malta que trabalha precisa disto. “Churros, é para a malta que nada faz”. É representante de vestuário.
Falou-me da situação política de Espanha e em especial da Catalunha, província com características muito especiais, a mais rica de Espanha, com língua própria, língua que foi proibida depois da Guerra Civil, assim como também foi proibido dançar “sardanas”, uma dança típica, com homens e mulheres de mãos dadas em círcu­lo e fazendo uma espécie de sapateado. Diz que houve mais mortes depois da Guerra Civil, que durante ela.
Pôs a tocar o Luís Llack que eu já conhecia e o Juan Manoel Serrat.
Fala dos “tios” que têm tudo nas mãos e não querem largar nada e das manifestações reivindicativas, as quais acabam com tiros e “hóstias”. Fala-me das pirâmides de homens, com 4 e 5 (?!) andares, à base das quais, às vezes, as povoações fazem concursos. Fala-me dos antigos combatentes, como o pintor anarca Santiago Rusiñol, que um vez se pôs a vender “duros” (5 pesetas) a 4 pesetas e ninguém comprava, por desconfiança, ou a vender tachos de barro, apenas a 5 pesetas, mas se alguém queria comprar algum, partia-o. Parece que pretendia provar que as pessoas eram estúpidas e avarentas, mas isso perde-se na neblina da lenda.
Tem a mania que é um dos 3 milhões de espanhóis, que trabalham para os outros 30 milhões de “mamões”. Isto é, candidato a vítima, num futuro próximo.
Deixa-me em Sitges, povoação turística, também. Escrevi aos pais e à Alcina.
Depois de muito tempo, boleia para Barcelona, dum puto muito curioso que me perguntou todos os pormenores do meu actual modo de vida. Só não concordou que eu não procurasse conhecer bem as localidades por onde passo.

Pois é, mas o meu destino é Londres e assim, eu só estou de passagem, tanto fazia ser pelo Sul, como pelo Norte de Espanha. Aliás, nada me interessa. Estar na estrada de braço levantado é um óptimo passatempo que me obriga a esquecer-me do que faço aqui ou que vida é a minha.

Deixou-me no centro de Barcelona e, para meu mal, esqueci-me do livro que estava a ler, no carro. Agora, que estava a entrar na interessante parte das cerimónias de passagem a Puros e a Perfeitos, dos antigos Cátaros.
Ó maldita cidade, que tens todas as pensões cheias e todas a partir do 3º andar. É que muita malta que trabalha aqui, vive nas pensões. Arranjei um duplo, por 135 pesetas.
Dei uma volta por um passeio, estilo avenida da Liberdade, e pela parte velha da cidade. Meti conversa com uma Carmen, que se sentou à minha mesa numa esplanada, que é da Andaluzia, que trabalha como eventual numa oficina, estuda idiomas, me diz que este local é frequentado pela malta progressista, em todos os sentidos, cá do burgo, burgo de 3 milhões. Fala-me da moda do Gay Power dos bi-sexuais ingleses. Diz que falo muito bem espanhol (aliás, não é a primeira pessoa que o diz). Dá-me uma ideia do que há para ver cá no burgo.
Chega um amigo. Falam. Quando volta a falar co­migo, ele levanta-se e vai-se e ela atrás, explicando-lhe, possivelmente, que não há razão para ciúmes.
A dor de cabeça que me assola, desde que andei a subir escadas, só sairá depois de dormir e é isso que faço.

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